domingo, 7 de janeiro de 2024

Cafuzo: Prelúdio

 Minha tragédia tem nome e sobrenome. Emílio Fiorentino Battistella é o nome do homem branco e velho que destruiu parte de mim assim como outros homens brancos e velhos arruinaram a vida de muitas outras pessoas em situações parecidas que a minha. Minha tragédia tem sobrenome Batistella e a forma de uma grande estrutura metálica que se estende sobre a margem norte da Baía da Babitonga. Assim como uma galáxia ou uma molécula, o núcleo duro do porto é apenas uma estrutura física central de um complexo muito maior. Essa estrutura em especial compõem um canal artificial, pátios, armazéns, estradas, navios e seu óleo, caminhões e sua fumaça, postos de gasolina, funcionários e é claro um fantasma sem forma física mas que assombra os meus sonhos chamado grupo econômico.

O primeiro sinal foi o asfalto. Lembro perfeitamente de como era caminhar descalça pelas estradas de terra a caminho da praia. A poeira fina massageava o pé e após a chuva era comum ver poças de lama borbulhando pelo acumulo de ar que era solto pela terra fofa. Minha tia-avó costumava dizer que as poças com bolha era onde se pegava bicho de pé, dessa forma quando fôssemos pular em uma poça era preciso procurar uma que não soltasse bolhas. Nossa casa ficava na quadra mais afastada do mar. O que ainda era muito próximo do mar já que a rua canário tinha apenas duas quadras. A quadra da frente que ficava na beira-mar e a quadra de trás dava de fundos para a igreja, depois da igreja vinha a floresta.

Nós morávamos na quadra da floresta. Quando o asfalto veio, cortando nosso caminho para o mar, foi quando precisei usar chinelos pela primeira vez. Lembro que a tira de plástico machucava entre meus dedos. O asfalto quente queimava a sola do pé, assim tive que optar entre sentir a dor constante entre meus dedos durante o dia ou enfrentar o calor do asfalto por alguns segundos enquanto ia e voltava da praia. Por muito tempo resisti e queimava meus pés, mas conforme fui crescendo, me adaptei aos chinelos.

Os chinelos, que me alienaram da experiência de sentir a terra, foram apenas o primeiro sintoma de que algo me estava sendo tirado. O segundo sintoma foi o canal. No ano que abriram o canal eu e minhas irmãs vimos pela primeira vez várias espécies de animais que apareciam mortos na beira da praia. Corais, tartarugas, toninhas (um tipo de boto anão), peixes-espada e principalmente uma espécie de caranguejo chamado caranguejo-aranha que vinham moribundos aos montes na beira da praia. Não é difícil imaginar a tristeza de uma criança vendo um boto morto, mas por incrível que pareça, o maior motivo de choro eram os caranguejos-aranha. As toninhas chegavam mortas e eram rapidamente devoradas por cachorros, lagartos, gaivotas e abutres. Os caranguejos-aranha vinham vivos e eram vitima da crueldade humana. Lembro da minha irmã mais nova, que deveria ter pouco mais que quatro anos na época, chorando "não é porque ele é feio que ele não sente dor". Chegou a dar nome para um dos caranguejos moribundos. Coitados.

Essa mortandade de animais foi seguida pelo gradativo desaparecimento de espécies que eram muito comuns. Os berbigões e as patas-de-vaca que cobriam muitos metros de areia foram sumindo e quase não aparecem mais. Os caramujos nautilus apareceram por alguns verões e sumiram na mesma velocidade que apareceram. Os sangue-de-boi, os tuim, as cobras-cegas e muitos outros nunca mais foram vistos. Até os manjubinhas que nós capturávamos em piscinas de areia e o mar recolhia eles novamente foram embora. As tatuíras quase não vem mais nos visitar.

Depois disso veio o óleo. Um verão em especial houve um vazamento em que eu, minhas irmãs e meu tio Fernando entramos no mar e ficamos com o corpo coberto de óleo. Tentamos tirar de todas as formas. Sabão, óleo vegetal e até mesmo esfoliar a pele com areia. Lembro que esfreguei minha pele até sentir dor, mas o óleo não saiu. Levou dias para as manchas deixarem a nossa pele. Mas não deixou nossa memória.

O último sintoma que vem aumentando exponencialmente e parece que não vai ter fim são as pessoas. Éramos um um grupo pequeno. O balneário do Uirapuru era um nadica de nada. Sete ruas de duas quadras, todos se conheciam, frequentavam a mesma igreja e os perigos eram conhecidos. Com o asfalto vieram uma infinidade de pessoas e já não era seguro para as crianças brincarem na rua sozinhas. Eu, por ser do gênero feminino ainda tive que sofrer com o assédio desse povo. Nossos vizinhos do Uirapuru não assediavam crianças e adolescentes. Os bebês podiam ficar pelados. As meninas podiam ficar de topless. Com os estranhos vieram a obrigatoriedade de roupas cada vez mais fechadas e eu já não podia mais jogar bets na praia sem ser seguida pelo olhar de homens levando a mão a virilha. Nossas amigas da rua precisavam sempre da presença de pais ou de primos para fazer caminhos que quando éramos crianças fazíamos sozinhas. Fui alienada do meu direito de ir e vir e da sensação do sol aquecendo e secando minha pele sem ser exposta a malícia alheia.

A especulação imobiliária acabou com as florestas e com a restinga. As corujas buraqueiras foram embora. Os vaga-lumes se perderam nas luzes da rua. A praia foi tomada de lixo e caixas de som. O canto dos pássaros precisa competir com o barulho dos motores que cruzam a Avenida Brasil e o som das ondas é interrompido por uma competição de playlist de turistas.

O rio Jaguaruna (apelidado carinhosamente pela minha faminha de riozinho) no qual eu tomava banho, hoje já não me disponho nem a molhar os pés, já que toda essa gente precisa fazer cocô e eu não confio na responsabilidade deles em se preocupar com o destino dos dejetos. As embalagens de salgadinho e latas de cerveja que eles consomem ficam na areia da praia. Se eles não tem vergonha do lixo, que é tão aparente, imagine só do esgoto que vem por baixo da terra. Até isso piorou já que as antigas valetas que tratavam a água que vinha das casas foram aterradas, antes podíamos ver com clareza quem tratava e quem não tratava o esgoto.

Tudo aconteceu porque em algum lugar um velho branco com sobrenome italiano decidiu fazer dinheiro com as terras que ele roubou de caiçaras com uma empresa que tem sede em São Paulo. Um velho desgraçado que nunca tomou banho no rio Jaguaraúna, que nunca dormiu na rede ouvindo som dos morcegos comendo o fruto das castanholas, que nunca pisou descalço na terra da rua canário. Um velho cretino que era dono de madeireira, construiu a vida derrubando arvores e roubando terras, como é de costume dos grandes proprietários do nosso país. Graças a esse velho, meu espírito vive em constante luto por ter perdido o acesso a um ambiente em que meu corpo e minha alma eram livres.

"Mas é o desenvolvimento" há quem diga. Não. O porto de Paranaguá está operando com apenas 1/3 de sua capacidade enquanto a iniciativa privada quer desmatar mais florestas e arruinar mais vidas para dar lucro a uma família de sobrenome europeu. Assim como nas cidades o número de imóveis vazios cresce junto da população de rua, as florestas vão sendo sacrificadas em nome desse Deus mercado e seus grupos econômicos fantasmas. Os caiçaras que dependiam do mangue que foi arruinado pelo porto tiveram que migrar para alguma periferia de algum centro urbano por ai. Eu que frequento as bordas dessa tragédia, fui menos afetada. Tenho um pé na praia e outro na cidade.

 Minha ligação com essa terra veio do meu avô materno que era catarina, habitante do litoral desde tempos imemoráveis e de sobrenome Silva (sobrenome dado aos indígenas "da selva" no tempo colonial). Meus outros antepassados eram imigrantes. Grande parte de mim já foi alienada da terra a muitas gerações atrás. Acredito que por isso ainda não sumi de Itapoá. É onde tenho uma raiz mais profunda.

Essa tragédia da minha vida, de ser alienada da minha relação com o ciclo da vida e suas entidades (a água corrente, o solo, as arvores e os animais) é compartilhada por muitas pessoas. Algumas de maneira ainda mais trágica, como é o caso dos moradores de Mariana e Brumadinho. Outros de maneira crônica. É o caso do meu namorado Eduardo. A tragédia dele também tem nome e sobrenome. No caso Gustavo Golin Macedo e Cristiano Guedes Vianna. Mas isso é uma história para outra hora e que eu precisei de toda essa introdução para poder contar.




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