O despertador tocou A Day To Remember - Mr Highway's
Thinking About The End. Ela acordou com Fritz Haber dormindo em seu
travesseiro. Levantou da cama, indo descalça até a sala. O celular estava na
cozinha do lado da cafeteira. A cafeteira estava programada para preparar o
café as cinco e quinze da manhã. Ela não desligou o despertador, deixou o
celular tocando enquanto foi até a geladeira pegar a garrafa de leite de soja.
Foi até o armário e pegou uma caixa de all-bran, o clássico cereal integral de
trigo da Kellogg’s. Ela serviu o leite e o cereal em uma tigela e
então encheu uma grande caneca de café preto. Sentou na bancada da cozinha e
começou a comer de olhos fechados.
Vanderlei estava acordado. O enorme
galgo espanhol ficou de pé para colocar
a cabeça sobre suas cochas. Ela ignorou o cachorro.
Quando terminou de comer, tirou a
camiseta de pijama e colocou um top esportivo, um conjunto de moletom e seus
tênis de corrida. Vanderlei começou a latir e a saltar, empinando o quadril.
Ela pegou a guia, prendeu na coleira do cão e saiu para sua corrida matinal.
Desceu os dois lances de escada
escutando os passos do cachorro e o tilintar da coleira. O sol ainda não havia nascido e estava garoando. Ela colocou o capuz sobre a cabeça.
A cidade estava silenciosa, apenas
alguns carros passando na rua. O chão estava molhado e escorregadio. A iluminação dos postes ainda estava ligada, ela podia ver as gotas de garoa caindo lentamente nos feixes de luz. Correu pela Desembargador Benvindo Valente
do lado do muro coberto de hera do cemitério municipal. Podia enxergar a
abóbada de alguns dos mausoléus. Passou pela entrada de alvenaria pichada do
cemitério. Alguns hibiscos plantados na calçada estavam floridos. Foi até a
praça triangular com o clássico poste de iluminação de ferro republicano de
Curitiba. Seguiu pela Trajano Reis. Passou
pelo terreno baldio do lado do SINTRACON, onde cresce uma enorme araucária coberta
de líquens. Então virou na Inácio Lustosa, bem na esquina da baladinha
Peppers. Correu mais quatro quadras até passar pelo shopping Muller e foi até a entrada do passeio público. O parque ainda
estava fechado, mas seguiu pela ciclovia. Já estava ofegante e suando, mas
Vanderlei seguia contente, sem demonstrar sinal de cansaço, em uma marcha leve. Suas patas longas de galgo permitiam que ele andasse com calma na velocidade em que ela corria com esforço. Correu até a
esquina do memorial árabe e virou na rua passando entre a casa do estudante e o
colégio estadual, com sua murada colorida coberta de grafites. Quando avistou o Largo Bittencout, Vanderlei parou para fazer
xixi. Depois dele terminar ela continuou dando a volta no passeio público.
Passou pelo lado do lago, que estava coberto de vapor. Alguns passarinhos estavam cantando, escondidos em algum lugar sobre as árvores do parque. Passou pela frente do
pensionato Novo Lar, com a tintura toda descascada. As árvores estavam gotejando.
Chegaram novamente no arco da entrada do passeio publico e
correram todo caminho de volta para o apartamento. Foram exatos 3,7 km e
Vanderlei não parecia cansado. Ela, por outro lado estava ofegante, com a
face vermelha e com suor escorrendo da testa. Eram seis da manhã quando voltou
para o apartamento. Trancou a porta e tirou Venderlei da coleira. Pegou a
comida de cachorro no armário e deu para ele em um pote de concreto que ficava
atrás do sofá. Fritz Haber chegou miando, exigindo sua comida e protestando por não ter tido a preferencia. Ela pegou a
comida de gato de dentro do armário e deu para ele em seu pequeno pote de plástico,
na bancada da cozinha.
Ela tirou as roupas cheias de suor e jogou no chão. Ligou o chuveiro elétrico e esperou
a água esquentar. Quando viu que o vidro do box estava todo embaçado, entrou. Deixou a àgua quente limpar todo o sal de seu suor, então pegou o gel de
banho e espalhou pelos seus cabelos raspados, rosto, ombros, axila. Pegou mais
um pouco de gel e espalho pelos braços e pernas. Equilibrou-se em uma das
pernas para lavar o pé e repetiu o processo para o outro pé. Ficou mais um
tempo em baixo da àgua, simplesmente curtindo a sensação de limpeza. Desligou o chuveiro e se secou com uma toalha. Vestiu meias, uma calça jeans rasgada e uma
camiseta desbotada do Tazz, o looney toon. Pegou seu laptop e sentou no sofá.
Vanderlei sentou perto dos seus pés enquanto Fritz Haber estava sentado em cima
do encosto. Ela colocou o headfone e selecionou uma playlist de grunge no
spotfy. Fritz Haber começou a lamber seu cabelo molhado, mas ela não reagiu. Começou a jogar word of warcraft. Ela tinha um Troll Xamã. Ela
costumava jogar como elemental, mas agora que atingiu um level maior começou
lentamente a se aperfeiçoar em encantamentos. Ela já tinha terminado milhares
de quest e estava começando a entrar em partys para invadir dungeons, mas se
irritava com facilidade com os outros jogadores. Usou uma série de macros para
o computador jogar sozinho automaticamente enquanto ela foi até a geladeira
para comer um caqui. Quando terminou a fruta, limpou a boca com as costas da
mão.
Chamou Vanderlei para sair novamente, fazer suas
necessidades. Foi até a rua e deu o comando para o cão: “pode ir” . Ele fez o
que tinha que fazer e ela recolheu a sujeira em uma sacola de papel, então
jogou no lixo.
Subiu novamente para seu apartamento e aproveitou para
limpar a caixinha de Fritz Haber. Depois de tirar todo lixo de casa, decidiu
tomar outro banho.
Ela tomava, em média, três banhos ao dia. Quando eram onze horas ela pegou seu almoço na geladeira colocou a mochila nas
costas e foi trabalhar.
Pegou o ônibus.
Desceu duas quadras perto do trabalho e pegou o elevador
para bater o ponto na sala da secretaria.
Voltou para o arquivo. Ascendeu a luz, que piscou algumas
vezes antes de ascender definitivamente.
Suspirou e voltou a catalogar os processos. Abriu uma gaveta
com cuidado para os processos não despencarem. A poeira irritava seus olhos,
que ficaram vermelhos. Então algo diferente chamou sua atenção. Havia um
inquérito que não estava em ordem no arquivo, mas sim abandonado solitário
sobre um armário. Ela subiu na ponta dos pés para pegar a pilha maciça de
papel.
Era um processo com a capa de papel colorido azul e
plastificado, com cerca de cinco volumes. Ele parecia ser mais novo que os
outros processos que estavam na sala. Ela leu a etiqueta da capa, datilografada
processo “132.800.16.10.84-09”.
O processo foi instaurado em dezesseis
de outubro de mil novecentos e oitenta e quatro. O promotor era João Carlos Piccianne. Tratava-se
de uma investigação de um possível assassinato com ocultação de cadáver, sem
suspeitos.
Ela abriu o inquérito e começou a ler.
A primeira pagina era um Boletin de Ocorrência relatando o aparecimento de um
corpo na região de Piraquara. Um senhor chamado Bernardo Wiśniewski
estava praticando tracking com um amigo, Arno Gruber, a caminho da trilha Torre Amarela quando sentiu um cheiro forte de carne queimada vindo do terreno baldio
a beira da estrada. Ele relatou ter encontrado um corpo parcialmente coberto com
uma lona presa por pedras. O corpo estava carbonizado e não era possível de se identificar. O homem relatou ter voltado para o carro e ido imediatamente para a delegacia, sem contar para mais ninguém. O boletim de
ocorrência trazia os dados pessoais do declarante, como seu numero de RG, CPF,
filiação, endereço e descrição física. A segunda pagina era o Boletim de Ocorrência de Arno Gruber, que também relatou estar a caminho da trilha Torre Amarela quando o amigo sentiu um forte cheiro que descreveu como "carne queimada e querosene" e relatou a descoberta do corpo coberto por uma lona em um terreno baldio perto de uma vila na área rural de Piraquara. E então seus dados pessoais. Os declarantes eram dois homens caucasianos, de meia-idade e parcialmente calvos.
O documento seguinte a ser juntado foi
o mandado do delegado para a equipe de investigadores legistas ir até o local,
no mesmo dia.
Foi então que ela viu o relatório da equipe de investigação.
Uma série de fotos em preto e branco do local. Parecia ser um terreno
parcialmente descampado, com mato alto e algumas árvores pequenas. Ela viu
fotos da lona presa por pedras não maiores que um punho fechado e uma parte
levantada. Haviam marcas de pneu na lama a alguns metros de distancia e,
aparentemente, um guarda-chuva quebrado foi encontrado no local também.
E então fotos do corpo. O corpo estava de bruços, com os braços
rígidos em frente ao peito. A roupa derreteu e grudou em sua pele. O cabelo
também estava todo queimado e era possível ver os dentes por dentre os lábios
esticados do morto.
Cadu entrou na sala. Ela espremeu o papel junto ao peito.
“Vim dar uma olhada em como andam os arquivamentos, está tudo bem?” ela fez que
sim com a cabeça.
“o que é isso que você está segurando?” ele perguntou. Ela
relaxou os braços, mostrando a capa do inquérito. Ele estendeu a mão e pegou o
volume.
"Veja só, é o caso Syrenka. Isso aqui teve muita cobertura
da mídia nos anos 80” ele disse. “O que aconteceu?” ela perguntou. “Ninguém
sabe” Cadu respondeu e entregou o volume novamente para ela “com o tempo o caso
deixou de ser lamentado e foi aos poucos
sendo esquecido. Quer comer bolo? Foi aniversário de uma assessora e estão
dando uma festinha no nono andar”.
Ela pensou um pouco e decidiu que um bolo era uma boa
ideia. Eles pegaram o elevador e foram
até a festinha. O bolo era de floresta negra e estava úmido como se houvesse
sido guardado na geladeira. Mas estava gostoso. Ela comeu o bolo mas não
conseguia parar de pensar no inquérito. Ela queria ler mais.
(Vanderlei, o galgo espanhol)
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