terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Take me home

I feel so home sick
In this strange country
I can't write no more poetry
because my tears run thick
its been a long time
since i've last seen the sea
the sky is so dark, I can't see
Oh, lord of mine
i'm lost and alone!
Take me home



quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Golaya koshka

"Por isso mesmo eu acho sábio que você pare de ficar fuxicando essa história. Se Jörg escondeu os autos em um arquivo de inquéritos policiais ele deveria estar esperando que um promotor ou um delegado encontrasse. Não acho que estivesse nos planos dele que uma estagiária com cara de punk continuasse com a investigação. Não. Em respeito a ele você deveria devolver os autos para a delegacia de origem para que uma autoridade competente decida o que fazer. Faça isso em respeito a Jörg"
"Por que você se importa? Nem quanto Jörg foi executado você fez alguma coisa. Trinta anos depois você acha que alguém ainda vai se interessar por isso?"
O senhor suspirou e foi até sua garrafa de cristal e se serviu de mais meio copo de whisky. Pegou outro copo que estava ao lado da garrafa e serviu dois dedos. Deu o copo para ela e sentou-se novamente. Ele cheirou a bebida, com os olhos fechados e bebeu mais um pouco. Ela agradeceu a dose, levantando o copo em um brinde silencioso em direção a ele e então deu uma bebericada.  Era um delicioso scoth single malt e ela realmente desejou ter visto o rótulo sua garrafa original.
"Você ainda é muito nova e não sabe o que te espera. Existem bandidos que não sabem a diferença entre um policial e um delegado. Existem bandidos que são presos e quinze anos depois voltam para matar o promotor da acusação na porta de casa.  E existe o tipo de bandido que mata um funcionário da polícia ainda no inicio de uma investigação em plena ditadura militar. Acredite em mim, eu já trabalhei com senhores bem durões que morreram por descuidos menores. Você veio atrás de mim com o inquérito na mão, o que estava pensado? Você poderia estar batendo na porta do assassino de Jörg. Sabe-se lá Deus em que cova rasa você estaria nesse exato momento e em que fogueira os autos estariam"
Um momento de silencio pairou no ar pesado da sala com cheiro de madeira. Ouviu-se o canto sinistro de uma corujinha-do-sul marcando seu território do lado de fora. Ela suspirou.
"Você sabe quem é o delegado responsável atualmente?" Ela perguntou
"Não" ele respondeu "mas eu sei qual é a delegacia"
 Ela encarou o fundo do copo, fazendo o liquido rodopiar no fundo de cristal.
 "Fica na André de Barros" completou.
Ela deixou o copo na mesa de centro e se levantou.
"Muito obrigada por me receber. Tem certeza que não quer saber meu nome?" Ela perguntou.
"Sinceramente, eu não queria nem nunca ter visto seu rosto, minha jovem"
Ela assentiu em silencio e estendeu a mão, para cumprimenta-lo.
Ele a cumprimentou com o pulso firme. Olhou ela nos olhos, com seus olhos pequenos e coberto de rugas. Ela sentiu algo naquele olhar, mas não sabia dizer o que era. Ela nunca foi boa em contato visual.
"Adeus" ele disse e abrindo a porta disse em tom de cautela "e nunca mais me apareça nessa casa".
Ela saiu da casa e quando estava na calçada em direção a rua escutou o senhor recomendo " Faça a coisa certa".
Ela voltou para casa insatisfeita e perturbada. A visita que era para solucionar o mistério de vez só trouxe mais questionamentos. Quem era essa sirenka? Quem matou Jörg? O quê foi que Jörg descobriu? Fez todo o caminho de volta para a Trajano Reis sem encontrar a resposta de nenhum de seus questionamentos.
Chegou em casa e colocou água para ferver. Vanderlei estava dormindo, encolhido no sofá, mas Fritz Hans veio de dentro de seu quarto cumprimenta-la esfregando sua pele de pêssego em suas pernas. Ela tirou Fritz do chão e o deixou no apoio do sofá.  Ele estava com as costas empinadas e miava suplicante por atenção. Ela acariciou a nuca do gato pelado, enquanto ele retribuía com cabeçadas e afiava as garras no sofá, ronronando contente.
A água ferveu. Ela deixou Fritz e pegou um copo plástico de macarrão instantâneo sabor legumes de dentro do armário. Abriu a vedação de alumínio e tomou cuidado para derramar água quente até o limite indicado no interior do copo. O cheiro do tempero industrial do macarrão encheu suas narinas, foi quando ela percebeu que estava com muita fome. Fechou a vedação de alumínio novamente, quase queimando a ponta dos dedos no vapor. Ela teria que esperar intermináveis três minutos até que pudesse comer. Ela colocou 'Meet the Bullet"  do Drownig Pool para tocar, por que ela sabia que depois da introdução chata a musica teria aproximadamente três minutos. Enquanto a musica estava tocando ela tirou  roupa e tomou uma ducha gelada. Passou a mão no cabelo molhado e percebeu que ele estava com comprimento suficiente para afundar quando pressionado. Saiu da ducha sem se enrolar em uma toalha e secou as mãos.
Pegou sua maquina elétrica e configurou para o corte em tamanho 01. Puxava os fios para trás com uma mão enquanto a outra manejava a maquina barulhenta. Milhares de cabelos com poucos milímetros de comprimento se espalharam pela pia e pelo seu corpo molhado. A sensação de prazer que tinha ao sentir o cabelo sendo raspado beirava o êxtase. Sentiu um arrepio pelo corpo e todos os seus pelos se eriçaram. O som da maquina era mais relaxante que um mantra. Esse efeito foi cortado pela lembrança das fotos no inquérito do corpo com o cabelo queimado parecendo uma pasta plástica grudada ao crânio.
Ela usou um espelho de mão para ver se tinha raspado toda a região de trás da cabeça.Quando desligou a maquina a musica já tinha acabado. Retornou ao banho para tirar o cabelo que tinha se espalhado. Deixou a água escorrer pelo seu corpo e, fechando os olhos com prazer, passou as mãos pela cabeça sentindo o couro cabeludo nú receber a água diretamente do chuveiro. Esfregou com afinco sabonete por todo o corpo até sentir a pele ter textura de borracha sem nenhuma oleosidade. Lembrou-se das manchas causadas pelo livor mortis no corpo misterioso.
Saiu enrolada na toalha e se secou. Voltou para a sala com a toalha enrolada no corpo e pegou um par de rashis (talheres japoneses) de inox de dentro da gaveta. Abriu seu pote quente de macarrão instantâneo sabor legumes. Sentou de pernas cruzadas no sofá ao lado de Vanderlei. Pegou um maço de macarrão e enfiou boca a dentro, chupando os fios que ficaram para fora da boca com gosto. Sentiu o macarrão morno aquecer sua barriga. Lambeu os lábios limpando o caldo de legumes, somente para embebedar ele novamente com mais macarrão. Enquanto se deliciava com o macarrão lembrou das próteses dentarias de syreka.
Esses potes de cup noodles são pequenos demais. Ela terminou, insatisfeita, deixou os rashis na pia e jogou o pote plástico no lixo. Foi deitar ainda com fome. Fritz Hans a acompanhou até a cama e se aninhou na curva de sua coxa.
Ela olhou uma ultima vez para o enorme inquérito parcialmente apodrecido em cima de sua cabeceira.
Ela estava tão exausta que nem mesmo sua perturbação a impediu de dormir.

domingo, 6 de agosto de 2017

Sunny

I'll take you to an open place
So we can be under the sun
A place for us to be in peace
Because I love to see you run

You are so important to me
I just love to see you free
You are my perfect company
With you every day is sunny


sábado, 1 de julho de 2017

Lambrequim

Naquela tarde quando foi ao trabalho as secretárias avisaram que o promotor disse que era para ela ir a sua sala quando chegasse. Ela torceu o nariz. Bom não podia ser.
Foi até a sala do promotor no mesmo andar, bateu na porta com o nó dos dedos. "Pode entrar" uma voz masculina respondeu por de trás da porta.
Ela entrou. A sala era ampla. Tudo que era do ministério público era simples, o piso, a luminária, a mobília... Típica mobília compradas por licitação. Destoando disso, havia a coleção completa de Cezar Roberto Bittencourt e de Eugênio Raúl Zaffarini em capa de couro azul e vermelha, respectivamente, em uma prateleira, sustentados por um par de apoiador-de-livros com a imagem da deusa Diké em bronze. Vários diplomas e certificados de classificação em concursos públicos estavam pendurados na parede com belas molduras. Sobre a mesa uma foto do promotor mais jovem, trocando um aperto de mão com o Procurador-geral da República. Havia uma máquina de café da Nespresso em uma mesa só para ela, com uma vasta variedade de cápsulas coloridas metalizadas dispostas uma ao lado da outra como uma escultura de arte contemporânea em louvor a cafeína, a produtos patenteados e a empáfia.
O promotor estava tomando seu café expresso em uma pequena xícara de café prateada.
"Boa tarde" ele disse sobre a xícara. Ela acenou com a cabeça, esperando para ver o que ele tinha a dizer. Ele tomou mais um gole e deixou a xícara repousando sobre a mesa. "Como vão os arquivamentos?" ele perguntou, juntando as mãos sobre a mesa. "Estão bem. Até agora todos estão prescritos". "Certo" Ele disse "E quantos relatórios você já fez?" ele perguntou. Ela ficou quieta por um momento " Até agora nenhum" respondeu com as sobrancelhas franzidas. O promotor bufou, suspirando irritado "Você está trabalhando nisso há, o que? Três dias?". Ela levantou as sobrancelhas incrédula "Eu estou preenchendo uma planilha com os dados dos inquéritos antes de gerar os relatórios de arquivamento". "Quem te disse pra fazer isso?" ele perguntou. "Eu vi que era mais simples fazer uma planilha pra então preencher os dados em um modelo do word por mala direta"ela respondeu. Ele piscou como se não estivesse entendendo. "Assim eu posso fazer todos eles ao mesmo tempo" ela concluiu. "Tá certo. Mas entenda que para nós é mais interessante que você gere um relatório por dia ao invés de vários de uma só vez. De hoje em diante eu quero pelo menos um inquérito por dia em cima da minha mesa com o arquivamento pronto para nós mandarmos para o Conselho Superior no final do mês." ela assentiu e sentindo-se obrigada a fazer essa pergunta, incomodada, já tendo uma resposta em mente, questionou "Mas se houverem casos em que existam diligências? Casos com provas novas?". "Nesse caso, jogamos o inquérito fora" ele disse cruzando as pernas e pegando novamente a xícara de café. Aquela conversa estava encerrada.
Ela saiu e fechou a porta atrás de si. Ela entendeu o que isso significava. Se ela deixasse o inquérito no arquivo, eventualmente ele seria jogado fora. Ela entendia que a quantidade de inquéritos circulando dentro da promotoria era enorme e a ultima coisa que o promotor gostaria era de mais trabalho acumulado em sua mesa. O tempo de ter um ofício da prefeitura respondido era de no mínimo quinze dias e era comum que remessas feitas à policia civil voltassem um ano depois de serem remetidas com a simples frase "Não havendo tempo hábil para cumprir as diligencias, remeta-se ao ministério público para que se tomem as devidas providências" sendo que as devidas providencias eram exatamente iguais as remetidas a exatos um ano atrás.
Ela foi até seu computador, na sala onde Cadu trabalhava.
"Você por aqui?" Ele disse tirando um dos fones de ouvido que estavam conectados em seu computador "Você limpou o arquivo bem mais rápido do que eu esperava" ele disse rindo.
Ela passou a mão no rosto, cansada. "Vou precisar escrever um relatório por dia agora". "Mas seria tão mais fácil fazer por mala direta" ele disse. "Eu sei" ela disse iniciando o computador.
Enquanto ela trabalhava em um modelo para fazer seus arquivamentos ela pensou no caso Sirenka. Trinta anos, duas mortes e nenhuma resposta. Estava condenado a ir para uma pilha de lixo e ser jogado para sempre no esquecimento. Talvez se tornar papel reciclado, ou talvez ser queimado e contribuir um pouco mais para o aquecimento global. Ela pensou nos depoimentos das filhas de Jögg, esquecidos em um periódico online de baixa qualidade ao lado de manchetes como "Esposa mata marido e usa o corpo para fazer salgadinhos em Colombo" e "Polícia prende morador de rua por roubar engradado de cerveja".
Naquele momento ela tomou uma decisão que poderia fazer com que respondesse a um processo judicial. Prevaricação, talvez. Existe o tipo penal "alienação de documento público"? ela acreditava que não. De qualquer forma, ela entendia que estava excedendo sua liberdade de funcionária pública. Naquele dia, no fim do expediente ela levou o inquérito em sua mochila para casa.
Ela chegou em casa e, depois de cuidar de Fritz Haber e Vanderlei, sentou em seu velho sofá com as pernas cruzadas, com o inquérito no colo. Abriu o laudo de necrópsia que foi juntado aos autos meses depois do aparecimento do corpo.
"Vestes danificadas por fogo, tecido sintético. Brinco de Alexandrita no lóbulo direito. Cabelos quase completamente carbonizados de cor castanho-avermelhado. Estado de Rigor Mortis. Caucasiano. Órbitas oculares vazias, secreção presente característica do rompimento dos tecidos oculares com liberação do humor vítreo. Arcada dentária íntegra, presença de implantes dentários de ouro. A derme do rosto, pescoço, tórax e abdome apresenta lesões profundas, irregulares e difusas bem como se encontra em estado inicial de carbonização. O baixo ventre apresenta uma incisão de 12cm, com perfuração dos tecidos da derme, liposa, faciamuscular, mscular, peritonio pariental, peritonio visceral e musculatura uterina. Região cranial para a caudal posterior não apresenta lesões, a pele possui aspecto brilhante e livor-mortis. Membros superiores contraídos e rígidos na frente do peito, mãos sem unhas, em estado de carbonização. Membros inferiores, íntegros apresentando manchas rochas na lateral esquerda. Área genital profundamente lesionada pelo fogo, sem secreções. Cavidades craniana íntegra, massa encefálica de tamanho e aspecto normal. Caixa torácica não apresenta lesões internas. Coração com tamanho, cor e aspecto normais.  Pulmão dilatado, de cor acinzentada. Lesões em vias aéreas. Presença de fuligem nos brônquios.  Aparelho digestivo íntegro, sem vestígios ou resíduos alimentares. Realizada coleta de amostras de sangue e urina para envio ao laboratório."
Essa era a primeira pagina do laudo de necrópsia. Ela entendeu que era um relato puramente descritivo e detalhado de todos os procedimentos realizados de praxe em qualquer caso de suspeita por morte violenta. Então as coisas começaram a ficar hard-core, pois na pagina seguinte havia uma coletânea de ilustrações e fotos. A primeira ilustração parecia uma tentativa falha de uma criança em colorir a foto de uma mulher com uma caneta vermelha. Era a indicação das lesões encontradas no corpo, que cobriam completamente sua pele do rosto até os joelhos, com um risco preto no ventre, indicando a incisão encontrada. E então as fotos em detalhes, os bens da vítima dispostos lado-a-lado. O brinco e os farrapos que um dia foram suas roupas. O rosto queimado do corpo, com as cavidades oculares vazias. A arcada dentária com os molares de ouro. O corpo nú, completamente desfigurado e queimado. Fotos do ventre aberto, com uma régua para medir a incisão. A incisão era quase imperceptível por foto, precisando de olhos treinados de legista para ver que havia um corte em meio a toda aquela carne queimada. O crânio aberto, com um cérebro brilhante. O cérebro em uma bandeja metálica. O cérebro aberto ao meio na mesma bandeja metálica A cavidade toráxica aberta, com os órgãos todos encaixados. O coração em uma bandeja, o coração aberto em uma bandeja. O pulmão em uma bandeja, o pulmão aberto. O estômago, fígado intestino... Ela já estava ficando entediada quando abriu a foto das genitais da vitima absolutamente desfiguradas. Era um buraco de carvão.
Ela teve um arrepio e sentiu enjoo e uma sensação de frio na própria genital. O fato das fotos serem todas em preto e branco contribuía para a experiência ser ainda mais sombria. Ela fechou os olhos e respirou. Manteve a calma, voltou a ler.
Foi então que ela chegou na parte mais interessante. Eram as conclusões dos médicos legistas.
Em resumo, eles concluíram que os olhos da vítima derreteram devido ao contato com calor extremo, que aquelas queimaduras eram provenientes da queima de um liquido inflamável, mais provavelmente gasolina, enviando amostras para laboratório para análise química qualitativa. As manchas na lateral do corpo e o livor-mortis nas costas indicava que a vítima morreu em posição fetal, com o lado esquerdo do corpo pra baixo, sendo retirado de sua posição original e disposto deitado posteriormente, poucos momentos depois de morrer. Pelo estado de rigor-mortis era possível definir que a vitima havia morrido a menos de 42h do envio para necrópsia. A dos braços flexionados em frente ao corpo é típica de vítimas por morte dolorosa e por vítimas de incêndios. A incisão abdominal foi feita enquanto a vítima estava viva, devido a presença de sangue coagulado no interior do útero. As genitais e o abdome foram as partes mais afetadas pelo fogo, com fortes indícios de utilização da gasolina justamente para mascarar a realização de procedimento cirúrgico, tendo em vista a precisão do corte encontrado no ventre. A presença de fuligem no pulmão e lesões nas vias aéreas indicam que a vítima estava viva quando queimada.
A cabeça dela estava girando. Era um crime bárbaro e sem motivo. Ela passou os dedos sobre a assinatura em caneta dos médicos legistas: Jörg Baumbach e Carlos Daniel Amorim.
Ela fechou o inquérito. Ainda sentindo um pouco de náusea sentiu que estava mais intrigada com isso do que com qualquer outra coisa que já tivesse lido em sua vida. Aquele caso era pura brutalidade e mistério. O que Jörg descobriu? Por que Jörg foi morto?
Ela levantou do sofá com um pulo, acordando Vanderlei e buscou seu laptop. Ela iria levar aquilo para frente. Buscou o nome do então delegado em um buscador, Eduardo da Silva Fonseca. Encontrou seu nome em um obituário digital, falecido em 2008 com 75 anos. Pesquisou o nome do promotor de justiça, João Carlos Piccianne. Não encontrou nada de relevante. Então por Maximiliano Cristovão Saldanha Júnior, que era procurador de justiça, mas só encontrou alguns poucos resultados sobre Jaime Saldanha Jr. de um certo clube de tiro Águia de Haia que claramente não possuía relação nenhuma com o caso. Massageou as têmporas, começando a pensar que aquilo era uma perda de tempo. Procurou pelo nome do segundo medico legista que assinou a necrópsia, Carlos Daniel Amorim. Só apareceram perfis em redes sociais de pessoas com a metade da idade dele. Então ela teve um estalo. Pesquisou por Vô Carlos Daniel Amorim. Encontrou uma foto de uma adolescente abraçada com um senhorzinho careca de bigodes brancos. Entrou na pagina. Era uma foto do facebook, do perfil de uma adolescente de 15 anos, estudante do colégio Santa-Maria de Curitiba, com a seguinte legenda "Feliz aniversário Vovô Carlos, muitos anos de vida para o melhor médico da cidade." havia uma série de comentários na foto que traziam o nome do senhor Carlos Daniel Amorim, referindo-se a ele como Dr. Amorim, como Vô Carlos, Tio Carlos e por ai vai. Ao que tudo indicava ele estava vivo, mas não possuía uma conta em qualquer rede social.
Como fazer contato com um senhor do século passado sem redes sociais? Era muito simples. Ela precisava de uma lista telefônica. Ela sabia exatamente onde ir. Eram quase sete horas, se ela corresse daria tempo de ir. "Vanderlei, vem comigo!"ela disse para seu enorme galgo castanho. Abriu a porta para o cão e apressou o passo até a a Livraria Fenix, algumas quadras de casa na Trajano Reis, que na verdade é um sebo. Vanderlei foi seguindo em seu calcanhar, obediente. Quando chegou na pequena construção cor de Goiaba, coberta de pichações encontrou o funcionário com as chaves na mão, para fechar o sebo. "Irineiu!!" ela gritou correndo em sua direção "Irineu, não fecha ainda! Eu preciso de uma coisa urgente". O senhor de cinquenta anos pareceu surpreso e subiu os óculos com o dedo indicador. "O que pode ser tão urgente que não pode esperar até a amanhã?"ele perguntou. "Eu pago em dobro! Acredite em mim, eu preciso disso agora" ela disse "por favor". Irineu suspirou e abriu a porta para ela entrar. "Vanderlei, fica!" ela ordenou para o cachorro, que ficou esperando do lado de fora.
Ela foi até os fundos da loja e subiu em uma escada, onde ficavam pilhas empoeiradas de listas telefônicas antigas. Ela pegou quatro listas diferentes, uma de 1989 (a mais antiga que estava ali), uma de 1994, e por fim uma de 2007 (a mais recente que encontrou).
Ela foi até o balcão, carregando as três enormes listas. "Acho que essa é a segunda venda mais estranha que eu já fiz nesse sebo. A primeira mais estranha foi quando você comprou aquela cópia de 'A Filosofia da Viagem no Tempo' de Roberta Sparrow que eu nem sabia que fazia parte do acervo". Ele disse que ela não precisaria pagar em dobro. Sendo assim, ela pagou o preço normal e foi embora com Vanderlei.
Quando voltou para casa, colocou as três enormes listas no chão. Buscou pelo nome de Carlos Daniel Amorim, primeiro na lista de 1989. As folhas estavam caindo e se desmanchando. Em 1989 só havia um Carlos Daniel Amorim morando em Curitiba. Em 1994 já haviam cinco, entretanto um deles possuía exatamente o mesmo número de telefone que o Carlos Daniel Amorim de 1989, ela assumiu que ele continuou morando no mesmo lugar. O mesmo numero se repetia na lista de 2007, com o 3 extra na frente acrescentado pela Brasil Telecom como oitavo dígito em 2005. "Bingo" ela disse satisfeita com si mesma. Ela acessou a EKW Brasil e acrescentou o telefone. Ele morava em uma casa no Bom Retiro. Ela colocou o endereço no google maps. Era uma bela casa de madeira estilo colonial, com lambrequins, pintada em duas cores diferentes.
Não era longe de onde ela morava. Ela colocou o inquérito na mochila e decidiu dar uma volta.
Parou no ponto de ônibus, pegou a linha Cabral/Ozório. Andou calmamente até uma bela casa de madeira estilo colonial com belos lambrequins.
Bateu a campainha. Demorou para que fosse atendida. Escutou alguém andando por de trás da porta. Ela mostrou o inquérito azul claro para o olho mágico. Escutou um barulho de chaves e a porta se abriu.
Um senhor descabelado abriu a porta. Ele estava de roupão, aparentemente ela havia o tirado da cama. Ele possuía olhos verdes cansados, um bigode cheio e branco e seus poucos cabelos estavam bagunçados em sua testa calva, franzida de apreensão. Em sua mão direita, um revolver PT-99 em calibre 9 mm preto, jazia esquecido, apontado para o chão.
Naquele momento ela soube que havia encontrado a pessoa certa.
"Pensei que eu ia morrer antes de ver isso aparecer na minha frente novamente."
"Boa tarde, senhor Carlos, meu nome é..."
"Shhhhhhh" ele a silenciou "Eu não quero saber. Entre aqui logo"
Ela entrou. Era uma sala aconchegante, com um relógio cuco alemão na parede com seu ruidoso tic-tac. Um conjunto de poltronas floridas, uma enorme tv de tubo dentro de um móvel embutido todo de madeira, tudo isso sobre um grande tapete de lã com padrões geométricos.
"Onde você encontrou isso?" Ele perguntou.
"Estava em cima de um armário em um antigo arquivo de um prédio do ministério público."
"Meu Deus" o senhor exclamou, passando a mão na testa suada. Ela foi direto ao assunto "O que aconteceu com Jörg?". O senhor a olhou nos olhos pela primeira vez, desviando o olhar do antigo inquérito.
"A policia concluiu que Jörg cometeu suicídio". "Não. O que realmente aconteceu?" ela insistiu.
O senhorzinho soltou um suspiro triste "Espere um segundo. Eu preciso de um drink"ele disse se levantando e se servindo de uma dose de whisky de uma garrafa de cristal disposta em uma mesa de canto. Ele sentou no sofá e bebeu um gole da bebida.
"Eu mesmo fiz a necrópsia de Jörg. Não haviam muitos médicos legistas em Curitiba nessa época. Eu nunca quis ser da polícia, mas meu pai me convenceu a entrar na carreira publica, era o primeiro ano de que foi instituída a polícia civil. Eu e Jörg fomos uns dos primeiros legistas de Curitiba. Saí assim que juntei dinheiro o suficiente para montar meu consultório. Jörg não, ele adorava o que fazia. Ele era filho de alemães e se formou em medicina na Heinrich Heine de Düsseldorf. Nunca conheci um médico que gostasse mais de pacientes mortos do que dos vivos até conhecer Jörg. Ele me ensinou uma coisa ou outra. O pobre homem foi encontrado morto em casa com um tiro na cabeça. Acontece que eu fiz o exame de balística nele. Ele levou um tiro na nuca, de cima para baixo e não foi a queima-roupa. Seu cabelo não estava chamuscado. Na época eu cheguei a acreditar que pudesse ser suicídio, mas anos como medico forense me mostraram que não. Jörg foi executado. Hoje eu tenho certeza disso".
"Por quem?"ela perguntou.
"Eu não sei." ele disse "ninguém sabe, ninguém faz a menor ideia, mas eu te digo uma coisa: eram pessoas poderosas. E te digo outra coisa, o motivo está em suas mãos"
Ela estendeu o inquérito. O senhor pegou o papel com um pouco de receio, como se fosse explodir em suas mãos e continuou a falar "Jörg estava obcecado. Ele não deixava que o corpo fosse enterrado ou cremado, ele sempre encontrava novos exames, novas marcas. O cretino fez vários laudos diferentes durante o ano que estava atuando nesse caso. Sempre pedia por mais perícias. Ele examinou tudo que pode, as próteses dentárias, as queimaduras, o o corte no útero, até mesmo a tintura de cabelo da vítima. No inicio o delegado aceitava seus pedidos para realizar mais exames até que de uma semana pra outra ele e o promotor decidiram por unanimidade arquivar o inquérito. Jörg ficou indignado. Acredito que ele soubesse de alguma coisa, então ele sumiu com os autos. Algum tempo depois ele foi encontrado morto. Na época eu não achava que uma coisa tivesse relação com a outra. E mesmo se tivesse, eu não me envolveria. Tinha uma família para sustentar"
"Por que Jörg insistiu tanto no inquérito de uma mulher que nunca foi reconhecida? Nenhum parente nunca procurou por ela, ninguém nunca prestou queixa por seu desaparecimento em todo território nacional"
"Jörg não estava preocupado com a mulher. Ele estava preocupado com o bebê"
Ela sentiu todo o peso do seu corpo ir para os pés "Caralho" deixou escapar "bebê?"
"Sim, o bebê. Veja bem, eu sou médico obstetra. Sempre adorei trazer pessoas a vida, mesmo quando fazia residência. O corpo podia estar bastante queimado, mas eu reconheço uma cesariana quando vejo uma. Jörg reconheceu também. A medida do quadril e a disposição dos órgãos deixou bem claro que ela completou a gestação e aquela cesariana com certeza foi feita por um médico"
"Se isso ocorreu em 85..."ela pensou alto
"O bebe teria 32 anos hoje em dia" concluiu Carlos.


domingo, 18 de junho de 2017

Espejo

El espejo esta pintado
con colores muy extrañas
no conozco ese quadro
pero me duele las entrañas
Tengo miedo de mira-lo,
pero lo veo en el escuro
y de ojos cerrados
yo estoy tan solo...

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Jörg Baumbach

Escutou o som de um trovão. Em seguida o som de uma guitarra distorcida. Era o som de seu despertador tocando "raining blood" da banda Slayer. Ela acordou de ressaca, com a boca seca e com a cabeça doendo. Gemeu dolorosamente, recusando aceitar que estava acordada. Deu um suspiro frustrado quando Tom Araya começou a cantar: "Trapped in purgatory. A lifeless object, alive...". Sentiu que não conseguiria voltar a dormir, mesmo que tentasse. Então abriu as pálpebras com um pouco de esforço, sentindo os olhos secos e a vista embaçada.
Alexandre estava deitado de bruços ao seu lado, expondo a galeria de arte que eram o conjunto de tatuagens em suas costas musculosas. A coberta estava jogada sobre sua perna esquerda, revelando sua justa cueca boxer vermelha. Ele estava com o rosto afundado no travesseiro e parecia estar dormindo.
Ela esfregou as mãos no rosto, tentando enxergar com mais nitidez. "Você dormiu aqui?" ela perguntou com a voz rouca. Sentiu a garganta arranhar. Eram as doses de jägameister deixando uma lembrancinha da noite passada. Vendo que Alexandre não se mexeu, ela encostou o pé na costela dele e chacoalhou seu corpo "Ei!" ela tentou chamar sua atenção. Suspirou irritada ao ver que ele não reagiu. "EI! Você precisa ir embora!" ela disse chutando Alexandre nas costelas, fazendo ele cair da cama. Acordando, tentou se segurar tarde demais no lençol, caindo no chão e levando a roupa de cama com ele.
Ela levantou e foi para a sala, desligar o despertador. Eram seis da manha. O sol ainda não tinha nascido. A chuva caia forte do lado de fora do apartamento. Houve uma tempestade durante a noite. Abriu o armário em busca de sua caixa de cereal.
"Por que você programou o despertador pra uma hora dessas?" Protestou Alexandre, prendendo os dedos no emaranhado que era seu cabelo cor de ébano.
"Eu tenho aula. Você precisa ir embora" ela repetiu.
"Você nunca vai pra aula!" ele exclamou, estendendo os braços, indignado.
"E é por isso que eu tenho que ir hoje. Estou estourada em falta". Ela disse enchendo ruidosamente uma cumbuca de cereal.
Ela foi até a geladeira e se abaixou para procurar a garrafa de leite de soja. Pegou o leite, fechou a porta da geladeira e se deparou com Alexandre de braços cruzados. Ela decidiu ignorar e foi até seu pote de cereal, enchendo a cumbuca e escutando o som do leite que saía da garrafa fazendo "glub glub glub".
"Você precisa ter cuidado para os cracudos da Trajano não acabarem fumando esse seu coração de pedra" Alexandre disse abrindo a geladeira em busca de ovos para fazer uma omelete "onde tem uma frigideira?" perguntou. Ela apontou para o armário logo atrás de onde ele estava.
"Eu vou passar café para mim. Você quer?" ela perguntou virando os olhos, aborrecida.
"Agora sim um pouco de cortesia" ele disse quebrando os ovos na frigideira. "Quero sim, por favor"
Ela foi até a cafeteria elétrica e colocou uma colher de café dentro do compartimento do filtro. Fechou ele colocou a água.
Vanderlei chegou na cozinha e foi cumprimentar Alexandre, dando pequenas lambidas em sua perna. Alexandre cumprimentou o cachorro afagando sua cabeça, sem tirar os olhos da frigideira.
O café ficou pronto. Ela serviu em duas canecas. Uma das canecas era de ferro esmaltado com as bordas escurecidas. A outra era uma caneca simples de cerâmica decorada com as figuras de snoopy e woodstock. Alexandre serviu o omelete em um dos pratos da pia que estava limpo. Abriu uma gaveta onde, pela lógica universal das cozinhas, encontrou talheres. Foi até a bancada para sentar.
"Ah, por que minha perna está doendo tanto? Cacete!" ele se assustou olhando olhando para a própria perna "Você tatuou um pinto na minha perna?!"  exclamou sem acreditar.
Ela deixou um pequeno sorriso de satisfação escapar de seus lábios. Com os olhos vidrados no cereal respondeu "Isso não é um pinto qualquer. É um dickbutt. Você disse que eu podia tatuar o que eu quisesse" disse antes de enfiar uma colherada de cereal na boca.
"É um pinto com rosto e asas" ele disse olhando decepcionado para a figura de duas polegadas no alto de sua coxa.
"Esquece, você não passa tempo o suficiente na internet para entender. De qualquer forma, é *cof cof* minúsculo. Se quiser pode simplesmente cobrir com outra tatuagem ou tirar *cof cof* com lazer", disse sendo interrompida por uma leve crise de tosse com gosto de jägameister, "Não é como se fosse atrapalhar sua vida nem nada" concluiu.
Fritz Hans pulou na bancada da cozinha e miou impacientemente, pedindo por café da manhã. Como todo gato pelado, o metabolismo de Fritz Hans era muito acelerado e isso fazia com que tivesse fome de duas em duas horas.
Ela pegou o gato no colo, sentindo sua pele de pêssego morna. Então, pegou a ração dele de dentro do armário. Serviu no pote de comida e deixou que ele comesse.
Pegou a caneca de café com duas mãos, esquentando os dedos gelados pela madrugada. Sentiu o cheiro do café, seu vapor quente aquecendo seu rosto. Bebeu um gole e deixou que a bebida funcionasse como vasodilatador, mandando a ressaca para longe de seus vasos sanguíneos da cabeça.
"Talvez eu guarde ele por um tempo como cicatriz de batalha" disse Alexandre encarando a própria caneca de café, com um misto de desgosto e aceitação.
Ela terminou de comer enquanto Alexandre havia acabado de começar. Deu comida para Vanderlei, que saiu do lado da visita com o rabo abanando de empolgação diante de sua refeição matinal.
"Eu vou me arrumar para sair, preciso pegar o ônibus as seis e quarenta." ela disse guardando o saco de ração.
Foi em direção ao quarto e antes de fechar a porta, olhou sobre o ombro e recomendou "lave bem essa tatuagem, para não pegar uma infecção. Acho que você entende o suficiente dos melhores procedimentos para isso. Sabonete neutro, água morna, deixar a pele respirar, etc".
Ela entrou no quarto e separou uma roupa para enfrentar o dia: Jeans, um par te coturnos pretos, uma camiseta de manga curta, um moletom e por cima uma jaqueta de couro. Deixou as roupas em cima da cama e foi para o banheiro. Ligou o chuveiro com água quente. Tirou a camiseta que estava usando e a calcinha. Jogou as roupas em um cesto de roupa suja improvisado que consistia em uma lixeira de vime. Olhou o rosto no espelho e viu que estava com olheiras e olhos vermelhos. Passou a mão nos cabelos raspados, pensando se já estavam crescidos o suficiente para raspa-los novamente. O espelho embaçou.
Ela entrou no chuveiro sentindo o vapor quente abrindo seus poros e entrou de baixo da água corrente, com um suspiro de prazer. Sentiu a agua escorrendo em sua cabeça, levando o mal-estar da ressaca aos poucos. Abriu os lábios e deixou a boca se encher de água. Fez um bochecho, sentindo o gosto da agua doce.
Quando já estava seca e vestida saiu do quarto. Alexandre já tinha recolhido as coisas dele e ido embora, poupando os dois de uma despedida constrangedora. Vanderlei bocejou, ganindo.
Ela saiu, trancando o apartamento. Ainda estava chovendo então ela tentou se proteger da água andando em baixo da marquise, mas era impossível evitar ficar molhada. Por isso os coturnos eram ideal para esse tipo de tempo. Eram altos e impermeáveis, ideais para as calçadas irregulares Curitibanas.
Esperou no ponto de ônibus com as mãos dentro do bolso. Haviam mais duas pessoas esperando no ponto, mas não entraram com ela.
Ela foi de pé, se controlando para não dormir. O ônibus estava silencioso, ela decidiu não usar os fones de ouvido. Quase uma hora depois chegou na universidade. Entrou apática na antiga construção e foi até sua sala. Alguns olhares curiosos a seguiam enquanto ela se encaminhava para o fundo da sala. Talvez não lembrassem que ela estudava na mesma sala que eles.
Ela tinha duas alternativas: Ou dormia e corria o risco de não responder a chamada ou procurava coisas aleatórias no seu computador. Prestar atenção na aula estava fora de cogitação.
Decidiu ir pela segunda opção. Abriu suas contas nas inúmeras redes sociais que participava. Nada de interessante. Até pensou em começar a ler um livro ou ver um filme com legendas, mas teve outra ideia.
Abriu o buscador do google e procurou por "Syrenka". Primeiramente não encontrou nada que fosse referente ao caso do aparecimento do corpo. Encontrou várias fotos de monumentos na cidade de Varsóvia, Polônia. Também encontrou uma coletânea de mitos e lendas com várias versões da mesma historia protagonizada por um pescador e uma criatura mitológica semelhante a uma ninfa da água ou mais frequentemente por uma sereia. Essa criatura era um ser de natureza misteriosa, aparecendo e desaparecendo repentinamente, causando uma mistura de medo e fascínio em todos com que cruza. Ela percebeu que estava indo longe demais na pesquisa quando se deparou com um site de pornografia polonesa.
Decidiu mudar a forma de pesquisa. Buscou por "Caso Syrenka Curitiba". A quantidade de buscas diminuiu drasticamente e a quantidade de material relevante mais ainda. Apenas alguns Blogs traziam artigos com manchetes como "Trinta e dois anos e o caso Syrenka permanece um grande mistério" ou "trinta anos da morte do investigador Jörg Baumbach, encontrado morto depois de ter feito autópsia para caso Syrenka". Entretanto o material ainda era muito raso, não dizia nada.
Ao contrario de elucidar o caso as páginas da internet traziam teorias conspiratórias sem qualquer fundamento ou prova fática. Era mais comum que escritores usassem o caso como inspiração para histórias de terror do que de fato informar o leitor sobre o que ocorreu na fatídica manhã em que um corpo foi encontrado queimado sem ninguém ter reportado o desaparecimento de um amigo ou parente. Muito menos sobre a morte inexplicável do médico legista Jörg Baumbach, encontrado morto em casa com um tiro na cabeça. De acordo com uma noticia de um jornal digital, publicada em 2005, a causa mortis que constou na certidão de falecimento do legista foi suicídio. Sua filha, quando entrevistada, respondeu que a família nunca aceitou a versão da polícia.


(Fritz Haber, o Donskoy, ao lado de uma garrafa de Jäger)

terça-feira, 30 de maio de 2017

Baba Yaga

(Bogovnik- Baba Yaga)


Ela terminou de comer o bolo e, sem se preocupar em dar parabéns para a aniversariante, voltou sozinha ao arquivo. O inquérito 132.800.16.10.84-09 estava no chão, onde ela havia o deixado antes de Cadu aparecer. Pensou se deveria ser produtiva e voltar a sua planilha de arquivamentos ou se deveria continuar matando tempo com a leitura intrigante. A resposta estava bem clara. Ela sentou no chão e voltou a folhar o primeiro volume do processo.
O corpo foi mandado para ser analisado por médicos legistas. Em paralelo ao trabalho dos legistas a equipe de investigação policial começou a coletar relato de testemunhas. Os moradores da região foram intimados para prestar declarações. As declarações não eram muito longas. Todas as cinco testemunhas relataram a mesma coisa. O terreno em que o corpo foi encontrado pertencia a um fazendeiro mas aquela região ao lado da estrada não era produtiva. Há alguns quilômetros da fazenda havia uma vila de agricultores. O lugar habitado mais próximo a cena do crime era um bar chamado Syrenka.
 A dona do bar Syrenka era uma uma senhora Polonesa chama Elwira Kowalski de sessenta anos. Elwira disse aos investigadores que na noite anterior a descoberta do corpo o bar foi frequentado pelos mesmos clientes de sempre e que o bar fechou as 22h como de costume. Quando questionada sobre ter visto algum carro diferente naquela noite, lembra ter visto uma caminhonete passando na frente do bar, identificada por um de seus clientes como sendo da marca chevrolet modelo veraneio. Elwira relatou que alguns clientes ficaram surpresos por ser um modelo de carro incomum na região. Quando os investigadores  perguntaram sobre a segurança da vila, Elwira relatou que nunca tinha ouvido falar de um caso de homicídio na região antes do aparecimento do corpo e que toda a vila estava muito abalada. Na pagina seguinte as declarações dela havia seus dados pessoais, RG, CPF, endereço, filiação, idade.
"Aqui está você!" Cadu entrou novamente no arquivo "O pessoal da secretaria está louco atrás de você, eles já estão indo embora e precisam trancar a sala do ponto".
"Não percebi que estava tarde. Obrigada por me procurar" ela agradeceu.
"Se não fosse eu te procurando nesse buraco você ficava sem bolo e sem pagamento" ele disse, brincando.
Eles entraram no elevador. O silêncio foi quebrado pela pergunta "Por que o caso Syrenka ficou famoso nos anos 80?"
"Hmmm"Cadu olhou para o teto, acessando suas memórias mais antigas "foi um conjunto infeliz de fatores. Acho que primeiro foi o choque de uma cidade ainda pequena que não estava acostumada com violência, ainda mais por ocorrer em uma pequena vila rural na região metropolitana. Depois disso, o mistério do corpo não identificado, sem nenhum registro de desaparecimento ou ninguém procurando por ele. Mas isso tudo seria esquecido em pouco tempo se um dos investigadores não tivesse morrido no ano seguinte da denuncia ser feita, com o inquérito ainda em fase de investigação. Pequenos jornais começaram a divulgar versões pouco prováveis, histórias de terror e assombração da alma atormentada de uma misteriosa mulher queimada que nunca foi enterrada e nunca teve descanso por isso matou o homem que guardava seu corpo em um laboratório."
"O corpo era de uma mulher?" ela perguntou.
"Ao que tudo indica, era sim. A medicina forense naquela época não era tão precisa quanto a de hoje."
Eles chegaram no andar da promotoria, bateram o ponto na secretaria e foram embora.
Cadú tinha uma moto que ele deixava em um estacionamento de que era mensalista. Os assessores não podiam usar o estacionamento do Ministério Público que era só para promotores, procuradores e carros oficiais. Ela foi para o outro lado, para pegar seu ônibus.
 Quinta-feira era dia de ir para o boxe. A academia ficava na Rua São Francisco, número 150.Era um prédio pequeno, de quatro andares, sufocado pelos vizinhos. A porta retrátil metálica era decorada por um belo grafite colorido representando um casal. Ironicamente, a academia de boxe era exatamente na frente de uma funerária chamada Capela da Luz. Separados por apenas uma rua estreita de paralelepípedos, a capela costumava ser mencionada como ameaça nos treinos mais acalorados no ringue.
Ela foi direto para o vestiário. Abriu a bolsa e encontrou seu almoço esquecido dentro do pote. Ela havia ficado tão empolgada com o inquérito do caso Syrenka que esqueceu de almoçar.
Ela tirou a roupa que estava usando, colocou o shorts largo de boxe, um top preto tão fechado e firme que desaparecia completamente com a saliência dos seus seios e uma regata com o desenho desbotado de uma caveira mexicana. Enfaixou as mãos com suas bandagens encardidas e ficou descalça.
Saiu do vestiário e sentou no chão em um canto do ginásio. Ela abriu seu pote de comida e pegou um par de rashis (palitinhos). Era melhor almoçar atrasado do que não almoçar.
Enquanto isso os rapazes chegaram na academia. Ela treinava com mais dois rapazes, mais novos. Um se chamava João e o outro ela não sabia o nome e não se importava o suficiente para tentar descobrir. Eram rapazes com a idade entre dezessete e vinte anos, ela não sabia bem. Alexandre, o professor, chegou. Alexandre era um homem com jeitos lusitanos. Ele era baixo, tinha ombros largos, sobrancelhas grossas e cabelo preto cheio. A pele era muito branca e coberta por tatuagens estilo old school. A barba era longa e penteada com óleo, os bigodes cheios voltados para cima. O cabelo, rockabilly era curto dos lados e com um típico topete natural de curitibano em cima. Ele já estava vestido de regata branca e bermuda, as luvas de boxe penduradas no ombro.
"E ai" ele cumprimentou "Mandando ver em um pré-treino?" ele disse brincando. Ela se dignou a responder com um olhar cansado. "Vamos ver o que você tem ai" ele disse se inclinando para ver. Ela mostrou o conteúdo do pote: Arroz japonês, omelete e brócolis. "Cuidado pra não ter uma indigestão com uma refeição tão pesada" ele disse irônico. "Não enche o saco" ela disse, afastando ele com um chute fraco na barriga. Ela terminou de almoçar e os meninos saíram do vestiário, prontos para o treino.
"Vamos lá, pessoal" Alexandre ordenou "Cinco minutos correndo na sala". Ela suspirou e reclamou "Eu já corri hoje de manhã". "Você sempre diz isso" respondeu Alexandre, de braços cruzados enquanto os três alunos corriam.
Alexandre foi até o rádio no canto da sala e colocou Denis Binder pra tocar. "Não! Esse CD de novo não" protestou João. "Vocês só reclamam!" exclamou Alexandre.
Depois do aquecimento de corrida a turma ainda teve que pular corda, fazer uma sequencia de burpee, abdominal e algumas flexões até começar o treino propriamente dito, com os alunos já brilhantes de suor. "Certo. Todo mundo de luva" Disse Alexandre "Jab e direto no saco de quarenta". O som do rádio foi abafado pelo som dos três jovens socando vigorosamente os sacos enormes de pancada. Três minutos contínuos. "Já estão cansados?" perguntou Alexandre "Jamais!" respondeu o rapaz que ela não sabia o nome, rindo. "Você vai precisar mais do que isso pra me fazer suar" brincou João, que já estava com a camiseta grudada ao corpo de suor. "Tá bom então, Nove rounds de trinta segundos! Vai!" a turma começou, sem tempo pra descansar a sala se encheu do som dos alunos bufando e os gritos de incentivo do professor "Vai lá, Bruno, fechadinho. Ombro no queixo." "Movimentem as pernas crianças! Coordena o movimento ai João" "Deu trinta, descansa, respira" "Vamo lá vamo lá, só mais quatro rounds, ta tranquilo" "Eu menti, agora faltam quatro, vamo, vamo, vamo" "Estica esse braço ai" "vinte nove, vinte oito, trinta! Podem ir tomar uma água". Ela foi até o canto, onde pegou sua garrafa plástica e deu alguns goles pequenos e fez  um bochecho. Naquele momento, água era a melhor coisa do mundo.
"Hora da diversão criançada, vamos de Sparring. João e Bruno, façam dupla". Ela colocou as luvas novamente e foi até Alexandre. Levantou a guarda, quase encostando as luvas na maçã do rosto. Ele foi medindo a distancia dela que dava espaço com passos largos, circulando. Alexandre desferiu um cruzado, quase de brincadeira, que ela esquivou. "Bela tatuagem" ele disse, olhando para o desenho coberto de papel celofane na coxa da aluna "Fez aonde? Na cadeia?" ele disse vindo pra cima "Não" Ela respondeu esquivando "eu fiz em casa". "Caralho, você é bem porra loca mesmo" Ele disse baixando um pouco a guarda. Ela aproveitou a abertura para entrar com uma sequencia. Ele abriu o suficiente para ela atingir um direto no estômago do professor, mas não com força o suficiente para causar qualquer dano. "Bela sequencia" ele incentivou "faltou usar mais o ombro". Ela não respondeu nada.
O par de olhos gelados da garota fitava o rosto do professor, tentando antecipar os movimentos dele. Ela já estava exausta do pré-treino, gotas salgadas de suor escorriam pela lateral do seu rosto, mas esse é o propósito do boxe, continuar mesmo depois de esgotado, manter os movimentos coordenados mesmo quando a vista já está embaçada. Ignorar a dor e manter o foco.
Alexandre abaixou a guarda e acenou com as luvas, gesticulando para ela ir para cima. Ela respirou fundo pela boca e soltou uma bufada de ar. Ele não esquivava, defendia com os braços fechando a guarda, para esquerda, para direita, onde ela tentasse atingir. Os braços dela já estavam pesados, mas ela tinha que manter a guarda alta. "Quer tomar uma cerveja ali no Jokers depois do treino?"ele perguntou. "Fuck yeah" foi a resposta que ela deu.
O professor não pegou leve. Mandou uma sequencia que ela não conseguiu desviar, defendendo com os braços que batiam contra seu corpo e seu rosto, na tentativa de permanecer firme. Ela tentou manter os olhos abertos, tentou dar um jeito de sair da sequencia, talvez um gancho mirando nos rins, se ela se encolhesse o suficiente. Mas sua tentativa foi frustrada por um uppercut que recebeu direto no queixo. Ela escutou o som dos próprios dentes batendo *clack*. Ela se afastou, perdendo o balanceamento da base. Ela chacoalhou a cabeça, para dispersar a força do golpe e recompor o equilíbrio. Levantou a guarda novamente, luvas contra o rosto. Recuperou o centro de equilíbrio, afastando os pés.
"Estamos bem por hoje" disse Alexandre. Os alunos tiraram as luvas. João foi até sua garrafa, bebeu alguns goles e despejou o resto da agua em cima da cabeça.
Ela foi para o vestiário feminino. Ele era pequeno por que não haviam muitas garotas que treinavam la. Era um banco de madeira com um armario de dois compartimentos um banheiro com um chuveiro, uma pia e uma privada. Ela pegou a mochila de dentro do armario, deixou as roupas dobradas em cima da tampa da privada e Tomou um banho. Usou o mesmo gel de banho para lavar os cabelos raspados e o corpo. Se secou com a toalha que havia trazido e saiu. Alexandre estava esperando de braços cruzados na porta da academia. Ele apagou as luzes e trancou a porta.
O Jokers era um bar mal iluminado, piso xadres branco e preto. As paredes eram decoradas com roupas de arlequim e era possível encontrar cartas de valete escondidas na parede, no chão, no teto, de baixo das mesas. Os dois foram até o bar de madeira.
"Me vê uma diabólica ipa"Alexandre pediu "o que você vai querer?" ele perguntou. "Um chope brahma" ela respondeu olhando para o bartender. Rapidamente o rapaz do balcão trouxe os dois copos em forma de tulipa cheios de chope gelado com o colarinho cremoso. "Saúde"brindou Alexandre. Os dois levantaram o copo e beberam.
"Ah... Isso é que eu chamo de encerar o dia"ele disse, contemplando o copo molhado. Ela assentiu com a cabeça sem fazer contato visual.
"E então, me mostre essa obra de arte" ele disse olhando para a perna dela. Ela levantou um pouco o shorts, mostrando o desenho de um quadrado subdividido em quatro com alguns compartimentos diferentes. Em baixo do quadrado estava escrito "Баба-яга" com uma letra de traços grossos. "que merda é essa?" ele disse rindo. "É um Bogovnik" ela respondeu. "Saúde" ele disse "e isso que está escrito aqui em baixo?" "Baba Yaga" ela respondeu. "Caramba, já estou desistindo" ele disse. Ela suspirou e reuniu paciência para explicar "O Bogovnik representa a proteção e a Baba Yaga é um ser mitológico que protege os bons e castiga os maus. O conjunto, significa basicamente me proteja da Baba Yaga ou que a Baba Yaga me proteja. Na minha cabeça é algo legal"ela respondeu falando dentro do copo para tomar o chope.
"Por que você só não fez uma tatuagem mais simples como o símbolo do infinito, uma estrela ou um coração flechado?" ele perguntou."Qual seria a graça disso?" disse contrariada. 
"E você fez isso em casa?" ele perguntou. Ela consentiu com a cabeça, olhando para frente. "Como isso, meu Deus?"ele perguntou. "Você só precisa de uma caneta, uma agulha, uma colher, um motorzinho de 18 volts e tinta" ela respondeu "Com você falando parece fácil" ele disse.
"Que tal eu ir pra sua casa e você fazer uma tatuagem na minha perna?"ele disse brincando "Estou com saudades do Fritz e do Vanderlei".
Ela deu uma risada silênciosa e fez um sinal negativo com a cabeça.
"Vai se foder, Alexandre."

(Alexandre, o instrutor de boxe)




terça-feira, 23 de maio de 2017

Syrenka


O despertador tocou A Day To Remember - Mr Highway's Thinking About The End. Ela acordou com Fritz Haber dormindo em seu travesseiro. Levantou da cama, indo descalça até a sala. O celular estava na cozinha do lado da cafeteira. A cafeteira estava programada para preparar o café as cinco e quinze da manhã. Ela não desligou o despertador, deixou o celular tocando enquanto foi até a geladeira pegar a garrafa de leite de soja. Foi até o armário e pegou uma caixa de all-bran, o clássico cereal integral de trigo da Kellogg’s. Ela serviu o leite e o cereal em uma tigela e então encheu uma grande caneca de café preto. Sentou na bancada da cozinha e começou a comer de olhos fechados.
Vanderlei estava acordado. O enorme galgo espanhol ficou de pé  para colocar a cabeça sobre suas cochas. Ela ignorou o cachorro.
Quando terminou de comer, tirou a camiseta de pijama e colocou um top esportivo, um conjunto de moletom e seus tênis de corrida. Vanderlei começou a latir e a saltar, empinando o quadril. Ela pegou a guia, prendeu na coleira do cão e saiu para sua corrida matinal.
Desceu os dois lances de escada escutando os passos do cachorro e o tilintar da coleira. O sol ainda não havia nascido e estava garoando. Ela colocou o capuz sobre a cabeça.
A cidade estava silenciosa, apenas alguns carros passando na rua. O chão estava molhado e escorregadio. A iluminação dos postes ainda estava ligada, ela podia ver as gotas de garoa caindo lentamente nos feixes de luz. Correu pela Desembargador Benvindo Valente do lado do muro coberto de hera do cemitério municipal. Podia enxergar a abóbada de alguns dos mausoléus. Passou pela entrada de alvenaria pichada do cemitério. Alguns hibiscos plantados na calçada estavam floridos. Foi até a praça triangular com o clássico poste de iluminação de ferro republicano de Curitiba.  Seguiu pela Trajano Reis. Passou pelo terreno baldio do lado do SINTRACON, onde cresce uma enorme araucária coberta de líquens. Então virou na Inácio Lustosa, bem na esquina da baladinha Peppers. Correu mais quatro quadras até passar pelo shopping Muller e foi até  a entrada do passeio público. O parque ainda estava fechado, mas seguiu pela ciclovia. Já estava ofegante e suando, mas Vanderlei seguia contente, sem demonstrar sinal de cansaço, em uma marcha leve. Suas patas longas de galgo permitiam que ele andasse com calma na velocidade em que ela corria com esforço. Correu até a esquina do memorial árabe e virou na rua passando entre a casa do estudante e o colégio estadual, com sua murada colorida coberta de grafites. Quando avistou o Largo Bittencout, Vanderlei parou para fazer xixi. Depois dele terminar ela continuou dando a volta no passeio público. Passou pelo lado do lago, que estava coberto de vapor. Alguns passarinhos estavam cantando, escondidos em algum lugar sobre as árvores do parque. Passou pela frente do pensionato Novo Lar, com a tintura toda descascada.  As árvores estavam gotejando.
Chegaram novamente no arco da entrada do passeio publico e correram todo caminho de volta para o apartamento. Foram exatos 3,7 km e Vanderlei não parecia cansado.  Ela, por outro lado estava ofegante, com a face vermelha e com suor escorrendo da testa. Eram seis da manhã quando voltou para o apartamento. Trancou a porta e tirou Venderlei da coleira. Pegou a comida de cachorro no armário e deu para ele em um pote de concreto que ficava atrás do sofá. Fritz Haber chegou miando, exigindo sua comida e protestando por não ter tido a preferencia. Ela pegou a comida de gato de dentro do armário e deu para ele em seu pequeno pote de plástico, na bancada da cozinha.
Ela tirou as roupas cheias de suor e jogou  no chão. Ligou o chuveiro elétrico e esperou a água esquentar. Quando viu que o vidro do box estava todo embaçado, entrou. Deixou a àgua quente limpar todo o sal de seu suor, então pegou o gel de banho e espalhou pelos seus cabelos raspados, rosto, ombros, axila. Pegou mais um pouco de gel e espalho pelos braços e pernas. Equilibrou-se em uma das pernas para lavar o pé e repetiu o processo para o outro pé. Ficou mais um tempo em baixo da àgua, simplesmente curtindo a sensação de limpeza. Desligou o chuveiro e se secou com uma toalha. Vestiu meias, uma calça jeans rasgada e uma camiseta desbotada do Tazz, o looney toon. Pegou seu laptop e sentou no sofá. Vanderlei sentou perto dos seus pés enquanto Fritz Haber estava sentado em cima do encosto. Ela colocou o headfone e selecionou uma playlist de grunge no spotfy.  Fritz Haber começou a lamber seu cabelo molhado, mas ela não reagiu. Começou a jogar word of warcraft. Ela tinha um Troll Xamã. Ela costumava jogar como elemental, mas agora que atingiu um level maior começou lentamente a se aperfeiçoar em encantamentos. Ela já tinha terminado milhares de quest e estava começando a entrar em partys para invadir dungeons, mas se irritava com facilidade com os outros jogadores. Usou uma série de macros para o computador jogar sozinho automaticamente enquanto ela foi até a geladeira para comer um caqui. Quando terminou a fruta, limpou a boca com as costas da mão.
Chamou Vanderlei para sair novamente, fazer suas necessidades. Foi até a rua e deu o comando para o cão: “pode ir” . Ele fez o que tinha que fazer e ela recolheu a sujeira em uma sacola de papel, então jogou no lixo.
Subiu novamente para seu apartamento e aproveitou para limpar a caixinha de Fritz Haber. Depois de tirar todo lixo de casa, decidiu tomar outro banho.
Ela tomava, em média, três banhos ao dia. Quando eram onze horas ela pegou seu almoço na geladeira colocou a mochila nas costas e foi trabalhar.
Pegou o ônibus.
Desceu duas quadras perto do trabalho e pegou o elevador para bater o ponto na sala da secretaria.
Voltou para o arquivo. Ascendeu a luz, que piscou algumas vezes antes de ascender definitivamente.
Suspirou e voltou a catalogar os processos. Abriu uma gaveta com cuidado para os processos não despencarem. A poeira irritava seus olhos, que ficaram vermelhos. Então algo diferente chamou sua atenção. Havia um inquérito que não estava em ordem no arquivo, mas sim abandonado solitário sobre um armário. Ela subiu na ponta dos pés para pegar a pilha maciça de papel.
Era um processo com a capa de papel colorido azul e plastificado, com cerca de cinco volumes. Ele parecia ser mais novo que os outros processos que estavam na sala. Ela leu a etiqueta da capa, datilografada processo “132.800.16.10.84-09”.
O processo foi instaurado em dezesseis de outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.  O promotor era João Carlos Piccianne. Tratava-se de uma investigação de um possível assassinato com ocultação de cadáver, sem suspeitos.
Ela abriu o inquérito e começou a ler. A primeira pagina era um Boletin de Ocorrência relatando o aparecimento de um corpo na região de Piraquara. Um senhor chamado Bernardo Wiśniewski estava praticando tracking com um amigo, Arno Gruber, a caminho da trilha Torre Amarela quando sentiu um cheiro forte de carne queimada vindo do terreno baldio a beira da estrada. Ele relatou ter encontrado um corpo parcialmente coberto com uma lona presa por pedras. O corpo estava carbonizado e não era possível de se identificar. O homem relatou ter voltado para o carro e ido imediatamente para a delegacia, sem contar para mais ninguém. O boletim de ocorrência trazia os dados pessoais do declarante, como seu numero de RG, CPF, filiação, endereço e descrição física. A segunda pagina era o Boletim de Ocorrência de Arno Gruber, que também relatou estar a caminho da trilha Torre Amarela quando o amigo sentiu um forte cheiro que descreveu como "carne queimada e querosene" e relatou a descoberta do corpo coberto por uma lona em um terreno baldio perto de uma vila na área rural de Piraquara. E então seus dados pessoais. Os declarantes eram dois homens caucasianos, de meia-idade e parcialmente calvos.
O documento seguinte a ser juntado foi o mandado do delegado para a equipe de investigadores legistas ir até o local, no mesmo dia.
Foi então que ela viu o relatório da equipe de investigação. Uma série de fotos em preto e branco do local. Parecia ser um terreno parcialmente descampado, com mato alto e algumas árvores pequenas. Ela viu fotos da lona presa por pedras não maiores que um punho fechado e uma parte levantada. Haviam marcas de pneu na lama a alguns metros de distancia e, aparentemente, um guarda-chuva quebrado foi encontrado no local também.
E então fotos do corpo. O corpo estava de bruços, com os braços rígidos em frente ao peito. A roupa derreteu e grudou em sua pele. O cabelo também estava todo queimado e era possível ver os dentes por dentre os lábios esticados do morto.
Cadu entrou na sala. Ela espremeu o papel junto ao peito. “Vim dar uma olhada em como andam os arquivamentos, está tudo bem?” ela fez que sim com a cabeça.
“o que é isso que você está segurando?” ele perguntou. Ela relaxou os braços, mostrando a capa do inquérito. Ele estendeu a mão e pegou o volume.
"Veja só, é o caso Syrenka. Isso aqui teve muita cobertura da mídia nos anos 80” ele disse. “O que aconteceu?” ela perguntou. “Ninguém sabe” Cadu respondeu e entregou o volume novamente para ela “com o tempo o caso deixou de ser lamentado e foi  aos poucos sendo esquecido. Quer comer bolo? Foi aniversário de uma assessora e estão dando uma festinha no nono andar”.
Ela pensou um pouco e decidiu que um bolo era uma boa ideia.  Eles pegaram o elevador e foram até a festinha. O bolo era de floresta negra e estava úmido como se houvesse sido guardado na geladeira. Mas estava gostoso. Ela comeu o bolo mas não conseguia parar de pensar no inquérito. Ela queria ler mais.




(Vanderlei, o galgo espanhol)

domingo, 21 de maio de 2017

Introdução



As mãos dela estavam cheias de pó.
"Acho que nós deveríamos usar luvas para fazer isso" disse Cadu.
Carlos Eduardo (vulgo, Cadu) era um assessor. Não era seu chefe, oficialmente, mas era quem trabalhava todo dia ao seu lado, orientando seu trabalho.
Eles estavam em uma sala mal iluminada, um arquivo. Tudo ali remetia ao Brasil dos anos oitenta. Os arquivos eram de ferro pintados com uma tinta cor de areia clara que estava descascando, o piso era de taco, meio podre, no teto pendia um plafon de vidro opaco, emitindo uma luz amarela fraca de uma lâmpada incandescente.
Ela abriu um arquivo. O compartimento deslizou com um rangido metálico. Os papeis despencaram pelo fundo da gaveta. Ela pode ver que o suporte por onde os processos estavam catalogados era de plástico e estava apodrecido. As folhas bateram no chão, levantando poeira e um cheiro adstringente de mofo. Ela espirrou alto, cobrindo a boca com o braço.
"E mascaras também" Acrescentou Cadu.
Ela juntou alguns dos papeis com as mãos. A pilha de documentos que sobrou ainda tinha a altura de sua canela. O papel estava quebradiço e manchado de ferrugem. As folhas do meio estavam cobertas de mofo verde-azulado.
"Janeiro de mil novecentos e sessenta e dois" leu para Cadu, com a voz baixa.
"Provavelmente a maioria dos processos já está prescrito" ele disse "queria simplesmente poder jogar tudo fora".
Ser subalterno é uma tarefa ingrata, mesmo nas carreiras públicas.
Aquele arquivo estava esquecido no antigo prédio da promotoria. O ministério publico não renovou o contrato de aluguel com o dono do prédio. Finalmente a sede nova do centro cívico estava pronta. Como toda obra pública, demorou mais de uma década para ser finalizada. Ela podia lembrar de quando era criança e passava por um enorme terreno vazio no centro da cidade e perguntava para o avô "por que não tem nada aqui?". "É um terreno do governo"ele respondia. "E por que o governo não faz um parque ai? Que nem o passeio público" ela sempre fazia a mesma pergunta e o avô sempre inventava uma historia diferente "o governo esqueceu que tem esse terreno", "o governo está sem dinheiro", "estão fazendo um esconderijo subterrâneo, você só não consegue enxergar porque está de baixo da terra", "estão deixando o espaço livre para estacionar os discos-voadores" e na sua cabeça infantil todas faziam bastante sentido, mesmo assim ela perguntava a mesma coisa toda vez que por ali passava.
Aquele arquivo velho lembrava um pouco seu avô. Lembrava de quando ele sentava em sua poltrona ao lado da janela para ler os já extintos jornais impressos. Ela gostava de fazer as palavras-cruzadas. Ela queria ler aqueles arquivos e entender o que eles eram e porque simplesmente não foram para o arquivo morto como todos os outros. Ninguém realmente sabia o que era aquela sala, só se preocuparam em descobrir agora que já estavam de mudança. Inicialmente os procuradores decidiram mandar a equipe de limpeza jogar tudo fora, mas então um promotor teve a brilhante ideia de arquivar todos eles de forma oficial, afinal, o conselho superior ficaria muito feliz de ver o volume de trabalho que aquela promotoria estava dando conta, mesmo que fosse só arquivamento atrás de arquivamento por preclusão. E quem é qualificado o suficiente para esse tipo de tarefa? A estagiária.
Essa estagiaria especificamente era perfeita para o trabalho. Ela não era boa com o público, que se assustava com sua aparência, muito menos com os processos judiciais pois demorava semanas para fazer o que um outro estagiário levaria dias. No entanto, não podia ser mandada embora porque havia entrado por concurso publico e isso lhe dava certa estabilidade.
"Bem" disse Cadu "tenho que voltar para a promotoria. Logo, logo eu volto ver como você está. Divirta-se" e então foi embora.
Ela ficou sozinha na sala, deu um longo suspiro e começou a separar os arquivos. Tinha um tablet aberto em uma planilha onde ela teria que anotar o numero do procedimento, a data de instauração, o promotor que abriu o caso, o objeto de investigação e a ultima movimentação. Ela sabia que talvez não conseguisse todas as informações que precisava de todos os processos que ali estavam. Se ela simplesmente jogasse metade deles fora, sem ver do que se tratavam, ninguém perceberia, ninguém sentiria falta. Se não haviam sentido falta todos esses anos, por quê sentiriam agora? Mas ela não faria isso. Ela adorava estar sozinha naquela sala, com vários e vários inquéritos datilografados e carimbados a mão. Preferia ficar ali sozinha do que trabalhando na sala com o resto da promotoria.
Lentamente ela ia preenchendo sua planilha. Números, nomes, delitos... As vezes se perdia em algumas paginas. Lia alguns recortes de jornal anexados aos inquéritos, colocava os negativos contra a luz para revelar a imagem que escondiam, media as próprias digitais nas digitais carimbadas nas folhas.
"processo 53.800.27.01.62-02", " Promotor Cristovão Botelho da Costa", "Homicídio doloso qualificado", "ultima movimentação 09/10/1975". Já havia esvaziado a primeira gaveta. Checou o celular e viu que já estava na hora de ir embora.
Pegou o elevador e foi até a secretaria, bater o ponto. Pegou sua mochila de costas no armário, guardou o tablet dentro. Acenou com a cabeça para os funcionários da secretaria e saiu em silêncio. Pegou o elevador até o térreo.
Ela pegou o headfone de dentro da mochila, colocou ele nas orelhas e conectou no celular. Selecionou a playlist do Nirvana no spotfy e deu play. Cobriu-se com o capuz do moleton e seguiu caminho. Estava chovendo. Ela andou algumas quadras na calçada acidentada do centro da cidade. Haviam pedras que estavam soltas e quando se pisava nelas, espirravam lama. Ela tentou ficar de baixo das marquises para não se molhar tanto. Chegou no ponto de ônibus e ascendeu um cigarro. Tragou longamente, enchendo o peito de nicotina. Sentiu que tinha alguém a observando. Ela olhou para o lado e uma senhorinha de cabelos brancos desviou o olhar.
Mais algumas tragadas e o ônibus apareceu na esquina. Ela fez sinal para ele parar e apagou o cigarro na sola do all-star. Guardou o finzinho do cigarro de volta na cartela e embarcou. Passou o cartão transporte, foi para o fundo da condução e ficou de pé, segurando-se em um cano metálico. Os vidros estavam todos embaçados e o chão estava molhado, com pegadas lamacentas de sapatos. Ela se concentrou na musica que estava ouvindo. Foi até ao Bairro São Francisco. Deu sinal para o ônibus parar e saltou lá de dentro. Andou mais algumas quadras. Um casal de moradores de rua dormia abraçado envolto em cobertas de baixo de uma marquise. O cachorro deles levantou as orelhas, atento, quando ela passou, mas não latiu.
Parou em frente a uma porta retrátil de ferro pichada. Pegou o molho de chaves de dentro da mochila e abriu a porta. Entrou e trancou novamente a porta atrás de si. A luz do saguão acendeu sozinha, iluminando o estreito lance de escadas a sua frente. Subiu um andar, passou pelas portas de seus dois vizinhos de baixo. Um deles tinha um capacho e uma plaquinha de bem-vindo. O outro não tinha nada de convidativo. Ela subiu mais um andar. Chegou na porta de seu próprio apartamento. Pegou as chaves novamente e entrou. Era uma quitinete, pequena e mal decorada. Seu gato, Fritz Haber, a recebeu na porta, miando. Era um donskoy, ou seja, um gato pelado. Ele tinha a pele rosada e grandes olhos azuis. Ele se esfregou em suas pernas, carinhoso, ronronando.
Ela trancou a porta de casa e tirou a roupa. Ficou só de calcinha e pegou uma camiseta tamanho G que estava jogada no braço do sofá. A camiseta desbotada estava estampada com letras do alfabeto gótico escrito "too cool to be true". Seu cachorro, Vamderlei estava dormindo encolhido nas almofadas do sofá. Vamderlei era um enorme galgo espanhol castanho tigrado, com oito anos de idade, que foi usado para competir em corridas até não aguentar mais por estar velho. Ele estava na fila para ser sacrificado quando foi resgatado e rebatizado. Seu primeiro nome foi Jasse Owens, apologia ao velocista negro que venceu as olimpíadas de Berlin durante a Alemanha nazista. Por considerar que nome do cachorro remetia a seu passado obscuro de maus tratos além de ser um pouco racista, ela o rebatizou em homenagem a Vamderlei Cordeiro de Lima, o atleta brasileiro que, mesmo perdendo a liderança por ser interrompido por um fanático nacionalista terminou a maratona recebendo a medalha de bronze.
Ela ligou o celular no Bluetooth e conectou na caixa de som. Selecionou uma playlist de musica eletrônica estilo lounge. Ela foi até a cozinha onde encontrou pão quentinho em sua maquina de pão. Ela fritou um ovo e se serviu. A gema estava liquida. Ela separava pedaços do miolo do pão para embebedar na gema e comer. Depois de terminar o ovo e uma fatia de pão colocou o prato na pia, junto de mais louça suja.
Ela deu um longo bocejo, se espreguiçando e foi até seu quarto. Jogou-se na cama que estava bagunçada com uma coberta de lã, um travesseiro de espuma e o lençol de elástico soltando do colchão. Fritz Haber saltou junto dela, subindo e se acomodando em sua lombar. Ela decidiu dar o dia por encerrado. Era suficiente por hoje.
(Desenho que eu fiz da protagonista)

quinta-feira, 27 de abril de 2017

O inverno está chegando

Gelo cócito do nono inferno
Reclamar do frio não é solução
Já sinto a chegada do inverno
Mais gélido é o meu coração

Lago cocite, ilustração de Gustave Doré (Dante Alighieri : A Divina Comédia, 1861, 136 ill. et L'Enfer.)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

litle sister

So, here we go again
in this infinite wheel
this bleed that doesn't heal
of sorow and pain

I know how you feel
I also have cried, I once was blue
its ok, some times we fell
but I'll be here for you

Litle sister, you'll be fine
I'm, myself, a litle down
But I wont keep a frown
I'll be here sister of mine

domingo, 9 de abril de 2017

Minha Estrela

Eu navego em meu barquinho
No imenso oceano
Vou seguindo a todo pano

E vão se passando os dias
De tempestades e calmarias
De aguas quentes e brisas frias

Você é a minha estrela
De dia, não posso ve-la
Mas sei que lá está ela

Também quando acaba o dia
E chega a noite mais sombria
Você é a estrela que me guia




terça-feira, 21 de março de 2017

R.I.P:

18 de outubro de 1926, St. Louis, Missouri, EUA - 18 de março de 2017, St. Charles, Missouri, EUA

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Meu barquinho

Chacoalho sozinha com as ondas do mar
Meu barquinho balança na marola
Os barcos grandes não me dão bola
Sou pequena demais, não me faço notar

Tatuagem de Rodrigo Tas retirada do Pinterest