quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Haicai

 Olha, o meu medo

escondido aqui dentro

nem eu encontro



terça-feira, 24 de agosto de 2021

Longa noite

Rolando na cama

em uma noite insônia

 numa dor tão intima

de infinita agonia

 

com aperto no peito

presa em um pensamento

o mundo esta acabando

comigo aqui dentro

 

mas não agora

na noite insônia

não é a hora

quem sabe amanhã

 






segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Rua Canário

 Era uma manhã de verão como muitas outras. O sol estava brilhando alto, havia uma sinfonia de passarinhos cantando e o mato estava impregnando o ar com um aroma verde e vivo. A casa da Rua Canário era pequena e sempre estava cheia de gente. Era uma casa térrea com o piso todo de lajota de cerâmica vermelha daquelas ásperas, antigas. Os móveis eram feitos de palha trançada e tinham cheiro de guardado. O jardim de trás era grande, haviam três sombreiros plantados por lá, os muros eram cobertos de unha de gato e uma trepadeira de alamanda amarela crescia solitária bem aos fundos do jardim. O jardim da frente era ocupado principalmente por uma varanda onde estendíamos até cinco redes de uma vez só. Um dos problemas frequentes da varanda era o guano dos morcegos que deixava a parede que ia de encontro ao teto pintada de vermelho, devido ao fruto dos sobreiros.  Aquela varanda dava de frente para um pequeno jardim com um sombreiro plantado e uma cerca viva de hibiscos carmim. Ali na frente era possível observar cambacicas de barriga amarela com suas mascaras pretas bicando os hibiscos, uma profusão de beija-flores coloridos e de todos os tamanhos além de, claro, os canarinhos-da-terra amarelinhos de testa alaranjada que tomavam banho na estrada de terra esburacada da frente da casa. Eles costumavam ficar no portão de ripas de madeira, que devia ter meio metro de altura, espiando para dentro de casa enquanto eu espiava eles da varanda.

Como de costume eu tomei um copo de nescau e comi duas fatias de pão, uma com manteiga e outra com mel. Esse café da manhã era o suficiente para me manter em uma manhã ativa nos entornos do balneário dos Amigos do Banco Bamirindos Uirapuru, ou ABU, para ser mais simples.

De manhã costumávamos ir todos juntos para a praia. Meus avós, meus pais, minha tia Mirna, meus dois tios, minha irmã mais velha e eu.

Para ir a praia saíamos munidos de um guarda-sol algumas cadeiras e obviamente, um par de baldinhos com pazinhas de plástico para fazer castelos de areia. Saiamos da casa e seguíamos na rua canário onde tínhamos que cruzar com mais duas estradas de terra antes de encontrar uma restinga vasta, com salsa da praia se alastrando pelo chão cheia de flores roxas e tocas de coruja buraqueira que estavam sempre por ali, piando para quem passava. Havia um campo de futebol de areia e um quiosque também, mas eu não frequentava muito esses lugares.

Depois de pular a areia fofa escaldante que cozinhava a sola do pé, chegávamos a praia onde uns bons trinta metros de areia davam para o mar itapoense de água escura e ondas baixas e desordenadas.

Foi naquele dia que meu avô pegou na minha mão e caminhou comigo até o mar. Meu vô era um homem baixo e largo. Tinha a cabeça grande e quadrada, o cabelo castanho bem grosso penteado pra trás. Tinha o nariz quebrado,  grudado no rosto, caído e largo. Seus olhos eram acinzentados e semicerrados pela idade. A pele do rosto e braços era avermelhada enquanto a da barriga era branca. Por falar na barriga ela era proeminente e possuía uma impressionante cicatriz vermelha que vinha do meio do peito até o umbigo. Ele me dizia que ficou com aquela cicatriz por que ele comia sem lavar as mãos quando era criança então toda a sujeira se acumulou e virou uma pedra na sua barriga que ele teve que fazer uma cirurgia para tirar. Com o tempo eu soube que ele tirou uma pedra da vesícula e naquela época as cirurgias eram bem mais invasivas.

Meu vô me levou para dentro do mar pela mão. Conforme ia ficando mais fundo as ondas iam batendo e ele puxava meu braço para que minha cabeça ficasse sobre as ondas. Até que eu não conseguia mais encostar o pé no chão. Então ele me pegou no colo e me levou até a arrebentação parar, onde o mar ela calmo.

La, ele me colocou deitada na água e falou para eu encher minha barriga com ar. Para eu deixar meus braços, pernas e cabeça moles. E foi assim, em poucos minutos eu estava boiando e meu avô levantou as mãos para que eu visse que estava boiando sozinha. Daquela forma, quando eu estivesse no mar, mesmo que uma onda me puxasse, eu não me afogaria. Desde então, eu não tenho medo do mar.

Sempre que eu vejo o mar, em qualquer lugar do mundo que eu esteja, eu lembro do meu avô.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Babitonga

Os vidros da casa estavam todos embaçados. As paredes estavam suando, brilhando de umidade, era possível observar pequenas lagrimas escorrendo da alvenaria de tempos em tempos . Do lado de fora o céu cinza diminuía a luminosidade do dia e uma garoa incessante e silenciosa preenchia o ar e deixava todo e qualquer objeto exposto repleto de gotículas de água e irremediavelmente molhado.  Essa atmosfera era proporcionada pela floresta tropical fechada e pela maresia.
Já faz mais de uma década mas eu me lembro bem. Estávamos no inverno, junho ou julho. O litoral de Santa Catarina costuma ser um lugar quente, pelo menos para quem está acostumado ao frio serrano de Curitiba, mas nesse dia estava frio a ponto de eu vestir uma calça comprida e um moletom. Ainda sim estava de chinelo porque sempre me recusei a usar sapatos na praia. A família Duarte Silva estava toda reunida, depois de anos. Nós saímos em dois carros e fomos em direção a Marina do Pontal, na entrada da Baía da Babitonga.
Quando o Seu Orilton Duarte Silva percebeu que seu tumor tratava-se de um câncer agressivo e terminal pediu com a voz embargada para sua esposa, Dona Maria José Duarte Silva,  que seu corpo fosse cremado e as cinzas jogadas na Baía da Babitonga. Tenho certeza que ele imaginava algo bem diferente do que de fato ocorreu no dia de sua cerimônia de cinzas.
Naquele dia o tempo estava ruim e ventava muito. O mar estava batido, cheio de carneirinhos, não conseguiríamos fazer a cerimônia embarcados como queríamos. Assim, subimos em um trapiche em ruínas por uma escada de madeira apodrecida usada pelos pescadores que aproveitavam a estrutura cálida para pescar siris de tarrafa. A maré estava alta então para subir na escada era preciso entrar no mar com água nos joelhos.
A viúva, que tinha dificuldade de locomoção, decidiu observar a cerimônia da areia.
Minha mãe, a filha mais velha do falecido, trazia nas mãos uma caixa de madeira com puxador de ferro. Foi dali de dentro que ela tirou um saco plástico com as cinzas do meu vô aglutinadas como que em uma pedra. 
Já faziam dois anos que meu vô Orilton havia falecido mas sua segunda filha, Mirna, havia emigrado para a França no final da década de 90 e não havia conseguido voltar para o Brasil desde o falecimento até aquele momento. Por viver no hemisfério norte, só conseguiu tirar férias no verão de lá, ou seja, no inverno daqui.
As ondas batiam no trapiche, estourando com força, fazendo barulho e respingando água salgada e espuma.
"Alguém quer dizer algumas palavras?" Minha mãe perguntou, levantando a voz para competir com o barulho do vento e das ondas.
Após um minuto com os parentes se observando em silêncio o filho mais novo, meu tio Fernando, disse "Viestes do pó e ao pó voltarás".
Todos consentimos. Choramos muito nesses dois anos da data que ele havia falecido. E antes disso, nos seis meses que vimos o homem que meu vô era ser aos poucos consumido pela doença e transformado em uma figura quieta, parada, pálida e triste. Dessa forma, quando a família se reuniu naquele dia chuvoso e subimos naquele trapiche no meio do mar revolto, tudo estava molhado, menos os nossos olhos que já estavam secos de tanto chorar.
Minha mãe abriu o saco plástico, pegou um punhado de cinzas e jogou no mar. Depois dela meu tio Fernando que estava mais próximo jogou também. Minha tia Mirna também jogou as cinzas quase simultaneamente ao meu tio José Guilherme, o terceiro filho, que estava muito quieto.
Meu pai, que era mais próximo do sogro do que do próprio pai, também jogou um punhado de cinzas em silêncio.
Não consigo lembrar se minhas irmãs também pegaram as cinzas com as mãos para jogar no mar ou se tiveram receio e preferiram só observar. Mas eu lembro que quando eu fui jogar um punhado de cinzas o vento soprou na minha direção e uma onda estourou no meu pé, jogando as cinzas que eu havia atirado no ar na minha própria direção e cobrindo meu corpo, que já estava molhado pela água do mar e da chuva, de cinzas humanas. A umidade da minha pele, minha roupa e meu cabelo, reteve as cinzas como uma cola.
Fechei os olhos e a boca para que não entrasse pó de cinzas. Minha mão direita também estava coberta de cinzas então usei minha mão esquerda para limpar meu rosto.
Eu podia ver que meus parentes também estavam sofrendo para não serem atingidos pelas cinzas com o vento, mas não sei se mais alguém acabou inalando acidentalmente como aconteceu comigo.
Depois de jogarmos todas as cinzas no mar, descemos do trapiche limpamos o saco plástico e a a caixa de madeira na água salgada. Eu aproveitei para limpar minhas mãos e meu rosto. Jogamos o saco plástico no lixo e enterramos a caixa de madeira, que era biodegradável, na praia de frente da nossa casa.
Sempre que eu vejo o mar, em qualquer lugar do mundo que eu esteja, eu lembro do meu avô.