terça-feira, 30 de maio de 2017

Baba Yaga

(Bogovnik- Baba Yaga)


Ela terminou de comer o bolo e, sem se preocupar em dar parabéns para a aniversariante, voltou sozinha ao arquivo. O inquérito 132.800.16.10.84-09 estava no chão, onde ela havia o deixado antes de Cadu aparecer. Pensou se deveria ser produtiva e voltar a sua planilha de arquivamentos ou se deveria continuar matando tempo com a leitura intrigante. A resposta estava bem clara. Ela sentou no chão e voltou a folhar o primeiro volume do processo.
O corpo foi mandado para ser analisado por médicos legistas. Em paralelo ao trabalho dos legistas a equipe de investigação policial começou a coletar relato de testemunhas. Os moradores da região foram intimados para prestar declarações. As declarações não eram muito longas. Todas as cinco testemunhas relataram a mesma coisa. O terreno em que o corpo foi encontrado pertencia a um fazendeiro mas aquela região ao lado da estrada não era produtiva. Há alguns quilômetros da fazenda havia uma vila de agricultores. O lugar habitado mais próximo a cena do crime era um bar chamado Syrenka.
 A dona do bar Syrenka era uma uma senhora Polonesa chama Elwira Kowalski de sessenta anos. Elwira disse aos investigadores que na noite anterior a descoberta do corpo o bar foi frequentado pelos mesmos clientes de sempre e que o bar fechou as 22h como de costume. Quando questionada sobre ter visto algum carro diferente naquela noite, lembra ter visto uma caminhonete passando na frente do bar, identificada por um de seus clientes como sendo da marca chevrolet modelo veraneio. Elwira relatou que alguns clientes ficaram surpresos por ser um modelo de carro incomum na região. Quando os investigadores  perguntaram sobre a segurança da vila, Elwira relatou que nunca tinha ouvido falar de um caso de homicídio na região antes do aparecimento do corpo e que toda a vila estava muito abalada. Na pagina seguinte as declarações dela havia seus dados pessoais, RG, CPF, endereço, filiação, idade.
"Aqui está você!" Cadu entrou novamente no arquivo "O pessoal da secretaria está louco atrás de você, eles já estão indo embora e precisam trancar a sala do ponto".
"Não percebi que estava tarde. Obrigada por me procurar" ela agradeceu.
"Se não fosse eu te procurando nesse buraco você ficava sem bolo e sem pagamento" ele disse, brincando.
Eles entraram no elevador. O silêncio foi quebrado pela pergunta "Por que o caso Syrenka ficou famoso nos anos 80?"
"Hmmm"Cadu olhou para o teto, acessando suas memórias mais antigas "foi um conjunto infeliz de fatores. Acho que primeiro foi o choque de uma cidade ainda pequena que não estava acostumada com violência, ainda mais por ocorrer em uma pequena vila rural na região metropolitana. Depois disso, o mistério do corpo não identificado, sem nenhum registro de desaparecimento ou ninguém procurando por ele. Mas isso tudo seria esquecido em pouco tempo se um dos investigadores não tivesse morrido no ano seguinte da denuncia ser feita, com o inquérito ainda em fase de investigação. Pequenos jornais começaram a divulgar versões pouco prováveis, histórias de terror e assombração da alma atormentada de uma misteriosa mulher queimada que nunca foi enterrada e nunca teve descanso por isso matou o homem que guardava seu corpo em um laboratório."
"O corpo era de uma mulher?" ela perguntou.
"Ao que tudo indica, era sim. A medicina forense naquela época não era tão precisa quanto a de hoje."
Eles chegaram no andar da promotoria, bateram o ponto na secretaria e foram embora.
Cadú tinha uma moto que ele deixava em um estacionamento de que era mensalista. Os assessores não podiam usar o estacionamento do Ministério Público que era só para promotores, procuradores e carros oficiais. Ela foi para o outro lado, para pegar seu ônibus.
 Quinta-feira era dia de ir para o boxe. A academia ficava na Rua São Francisco, número 150.Era um prédio pequeno, de quatro andares, sufocado pelos vizinhos. A porta retrátil metálica era decorada por um belo grafite colorido representando um casal. Ironicamente, a academia de boxe era exatamente na frente de uma funerária chamada Capela da Luz. Separados por apenas uma rua estreita de paralelepípedos, a capela costumava ser mencionada como ameaça nos treinos mais acalorados no ringue.
Ela foi direto para o vestiário. Abriu a bolsa e encontrou seu almoço esquecido dentro do pote. Ela havia ficado tão empolgada com o inquérito do caso Syrenka que esqueceu de almoçar.
Ela tirou a roupa que estava usando, colocou o shorts largo de boxe, um top preto tão fechado e firme que desaparecia completamente com a saliência dos seus seios e uma regata com o desenho desbotado de uma caveira mexicana. Enfaixou as mãos com suas bandagens encardidas e ficou descalça.
Saiu do vestiário e sentou no chão em um canto do ginásio. Ela abriu seu pote de comida e pegou um par de rashis (palitinhos). Era melhor almoçar atrasado do que não almoçar.
Enquanto isso os rapazes chegaram na academia. Ela treinava com mais dois rapazes, mais novos. Um se chamava João e o outro ela não sabia o nome e não se importava o suficiente para tentar descobrir. Eram rapazes com a idade entre dezessete e vinte anos, ela não sabia bem. Alexandre, o professor, chegou. Alexandre era um homem com jeitos lusitanos. Ele era baixo, tinha ombros largos, sobrancelhas grossas e cabelo preto cheio. A pele era muito branca e coberta por tatuagens estilo old school. A barba era longa e penteada com óleo, os bigodes cheios voltados para cima. O cabelo, rockabilly era curto dos lados e com um típico topete natural de curitibano em cima. Ele já estava vestido de regata branca e bermuda, as luvas de boxe penduradas no ombro.
"E ai" ele cumprimentou "Mandando ver em um pré-treino?" ele disse brincando. Ela se dignou a responder com um olhar cansado. "Vamos ver o que você tem ai" ele disse se inclinando para ver. Ela mostrou o conteúdo do pote: Arroz japonês, omelete e brócolis. "Cuidado pra não ter uma indigestão com uma refeição tão pesada" ele disse irônico. "Não enche o saco" ela disse, afastando ele com um chute fraco na barriga. Ela terminou de almoçar e os meninos saíram do vestiário, prontos para o treino.
"Vamos lá, pessoal" Alexandre ordenou "Cinco minutos correndo na sala". Ela suspirou e reclamou "Eu já corri hoje de manhã". "Você sempre diz isso" respondeu Alexandre, de braços cruzados enquanto os três alunos corriam.
Alexandre foi até o rádio no canto da sala e colocou Denis Binder pra tocar. "Não! Esse CD de novo não" protestou João. "Vocês só reclamam!" exclamou Alexandre.
Depois do aquecimento de corrida a turma ainda teve que pular corda, fazer uma sequencia de burpee, abdominal e algumas flexões até começar o treino propriamente dito, com os alunos já brilhantes de suor. "Certo. Todo mundo de luva" Disse Alexandre "Jab e direto no saco de quarenta". O som do rádio foi abafado pelo som dos três jovens socando vigorosamente os sacos enormes de pancada. Três minutos contínuos. "Já estão cansados?" perguntou Alexandre "Jamais!" respondeu o rapaz que ela não sabia o nome, rindo. "Você vai precisar mais do que isso pra me fazer suar" brincou João, que já estava com a camiseta grudada ao corpo de suor. "Tá bom então, Nove rounds de trinta segundos! Vai!" a turma começou, sem tempo pra descansar a sala se encheu do som dos alunos bufando e os gritos de incentivo do professor "Vai lá, Bruno, fechadinho. Ombro no queixo." "Movimentem as pernas crianças! Coordena o movimento ai João" "Deu trinta, descansa, respira" "Vamo lá vamo lá, só mais quatro rounds, ta tranquilo" "Eu menti, agora faltam quatro, vamo, vamo, vamo" "Estica esse braço ai" "vinte nove, vinte oito, trinta! Podem ir tomar uma água". Ela foi até o canto, onde pegou sua garrafa plástica e deu alguns goles pequenos e fez  um bochecho. Naquele momento, água era a melhor coisa do mundo.
"Hora da diversão criançada, vamos de Sparring. João e Bruno, façam dupla". Ela colocou as luvas novamente e foi até Alexandre. Levantou a guarda, quase encostando as luvas na maçã do rosto. Ele foi medindo a distancia dela que dava espaço com passos largos, circulando. Alexandre desferiu um cruzado, quase de brincadeira, que ela esquivou. "Bela tatuagem" ele disse, olhando para o desenho coberto de papel celofane na coxa da aluna "Fez aonde? Na cadeia?" ele disse vindo pra cima "Não" Ela respondeu esquivando "eu fiz em casa". "Caralho, você é bem porra loca mesmo" Ele disse baixando um pouco a guarda. Ela aproveitou a abertura para entrar com uma sequencia. Ele abriu o suficiente para ela atingir um direto no estômago do professor, mas não com força o suficiente para causar qualquer dano. "Bela sequencia" ele incentivou "faltou usar mais o ombro". Ela não respondeu nada.
O par de olhos gelados da garota fitava o rosto do professor, tentando antecipar os movimentos dele. Ela já estava exausta do pré-treino, gotas salgadas de suor escorriam pela lateral do seu rosto, mas esse é o propósito do boxe, continuar mesmo depois de esgotado, manter os movimentos coordenados mesmo quando a vista já está embaçada. Ignorar a dor e manter o foco.
Alexandre abaixou a guarda e acenou com as luvas, gesticulando para ela ir para cima. Ela respirou fundo pela boca e soltou uma bufada de ar. Ele não esquivava, defendia com os braços fechando a guarda, para esquerda, para direita, onde ela tentasse atingir. Os braços dela já estavam pesados, mas ela tinha que manter a guarda alta. "Quer tomar uma cerveja ali no Jokers depois do treino?"ele perguntou. "Fuck yeah" foi a resposta que ela deu.
O professor não pegou leve. Mandou uma sequencia que ela não conseguiu desviar, defendendo com os braços que batiam contra seu corpo e seu rosto, na tentativa de permanecer firme. Ela tentou manter os olhos abertos, tentou dar um jeito de sair da sequencia, talvez um gancho mirando nos rins, se ela se encolhesse o suficiente. Mas sua tentativa foi frustrada por um uppercut que recebeu direto no queixo. Ela escutou o som dos próprios dentes batendo *clack*. Ela se afastou, perdendo o balanceamento da base. Ela chacoalhou a cabeça, para dispersar a força do golpe e recompor o equilíbrio. Levantou a guarda novamente, luvas contra o rosto. Recuperou o centro de equilíbrio, afastando os pés.
"Estamos bem por hoje" disse Alexandre. Os alunos tiraram as luvas. João foi até sua garrafa, bebeu alguns goles e despejou o resto da agua em cima da cabeça.
Ela foi para o vestiário feminino. Ele era pequeno por que não haviam muitas garotas que treinavam la. Era um banco de madeira com um armario de dois compartimentos um banheiro com um chuveiro, uma pia e uma privada. Ela pegou a mochila de dentro do armario, deixou as roupas dobradas em cima da tampa da privada e Tomou um banho. Usou o mesmo gel de banho para lavar os cabelos raspados e o corpo. Se secou com a toalha que havia trazido e saiu. Alexandre estava esperando de braços cruzados na porta da academia. Ele apagou as luzes e trancou a porta.
O Jokers era um bar mal iluminado, piso xadres branco e preto. As paredes eram decoradas com roupas de arlequim e era possível encontrar cartas de valete escondidas na parede, no chão, no teto, de baixo das mesas. Os dois foram até o bar de madeira.
"Me vê uma diabólica ipa"Alexandre pediu "o que você vai querer?" ele perguntou. "Um chope brahma" ela respondeu olhando para o bartender. Rapidamente o rapaz do balcão trouxe os dois copos em forma de tulipa cheios de chope gelado com o colarinho cremoso. "Saúde"brindou Alexandre. Os dois levantaram o copo e beberam.
"Ah... Isso é que eu chamo de encerar o dia"ele disse, contemplando o copo molhado. Ela assentiu com a cabeça sem fazer contato visual.
"E então, me mostre essa obra de arte" ele disse olhando para a perna dela. Ela levantou um pouco o shorts, mostrando o desenho de um quadrado subdividido em quatro com alguns compartimentos diferentes. Em baixo do quadrado estava escrito "Баба-яга" com uma letra de traços grossos. "que merda é essa?" ele disse rindo. "É um Bogovnik" ela respondeu. "Saúde" ele disse "e isso que está escrito aqui em baixo?" "Baba Yaga" ela respondeu. "Caramba, já estou desistindo" ele disse. Ela suspirou e reuniu paciência para explicar "O Bogovnik representa a proteção e a Baba Yaga é um ser mitológico que protege os bons e castiga os maus. O conjunto, significa basicamente me proteja da Baba Yaga ou que a Baba Yaga me proteja. Na minha cabeça é algo legal"ela respondeu falando dentro do copo para tomar o chope.
"Por que você só não fez uma tatuagem mais simples como o símbolo do infinito, uma estrela ou um coração flechado?" ele perguntou."Qual seria a graça disso?" disse contrariada. 
"E você fez isso em casa?" ele perguntou. Ela consentiu com a cabeça, olhando para frente. "Como isso, meu Deus?"ele perguntou. "Você só precisa de uma caneta, uma agulha, uma colher, um motorzinho de 18 volts e tinta" ela respondeu "Com você falando parece fácil" ele disse.
"Que tal eu ir pra sua casa e você fazer uma tatuagem na minha perna?"ele disse brincando "Estou com saudades do Fritz e do Vanderlei".
Ela deu uma risada silênciosa e fez um sinal negativo com a cabeça.
"Vai se foder, Alexandre."

(Alexandre, o instrutor de boxe)




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