quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Café da Manhã

Todos os dias eu acordo com a boca amarga por causa dos anti-depressivos. Um dos vários efeitos colaterais da minha medicação é fazer com que eu acorde, todos os dias da minha vida, com um gosto ruim e muito amargo na boca. Todo dia, a primeira sensação que eu sinto é aquele sabor forte e desagradável que vem me receber e anunciar o novo dia que surge.
 Não importa o quanto eu escove os dentes antes de dormir, a quantidade de água que eu tome, fio dental, enxaguante bucal. Não importa o que eu coma da noite, a posição que eu durmo, quanto tempo eu fico na cama, todo dia eu acordo com o mesmo gosto amargo na boca. Como se eu tivesse fumado um maço de Luke Strike sem filtro, tivesse feito um bochecho com óleo de rícino e engolido tudo isso alguns minutos antes de acordar.
É um pouco contraditório que justamente a medicação que foi feita para recuperar minha vontade de viver tenha um efeito tão desencorajador.
Como que alguém, que já não tem vontade de acordar, é recebido com esse presságio assustador como se todo dia passasse pela terrível dor dos recém-nascidos que sentem o ar queimando nos pulmões com a primeira respiração? Como que se espera que essa pessoa saia da cama para viver as mesmas dores, desamores e desabores que sente todos os dias incessantemente e encontra no sono um refugio onde pode sucumbir ao entorpecente que anula todo e qualquer sentimento ou pensamento e te joga em algo próximo ao limbo,  a doce condição de não existência, tão semelhante ao alivio da morte?
Basta que eu recupere minha consciência, sem nem abrir os olhos, sei que estou viva por que minha boca está coberta de um ranço amargo.
Não posso mais retornar ao doce mundo dos sonhos por que a sensação é tão ruim e inquietante que em poucos minutos me enrolando na cama torna-se náusea.
Eu sempre saio da cama louca pra tirar aquele gosto impregnado no meu trato digestivo. Nessa hora meu corpo está pedindo por algo doce e suave para contrastar com a desgraça que se instaurou aqui dentro. Acontece que lá em casa só eu como doce no café da manhã. Todos os meus familiares são adeptos dos salgados. Omelete, pão com manteiga, café com leite. É isso que tem na minha casa de manhã. Um bolinho de fubá ou uma cuequinha virada são raridades, normalmente não posso contar com sua presença.
Por esse motivo é comum me ver cedo na cozinha de manha cedinho, com o cabelo descabelado e olheiras fundas, arrastando o liquidificador de um lado para o outro e untando frigideiras para que eu possa satisfazer minha necessidade por algo doce com uma rabanada, uma panqueca, uma vitamina de banana, qualquer coisa doce.
Quem acorda depois de mim acaba comendo antes por que eu estou ocupada na função de forjar meu famigerado docinho matinal.
Eu estou exausta, atrazada, com o pijama sujo de comida e ali batalhando para encontrar motivos para eu viver.
Talvez esse seja o objetivo do anti-depressivo no fim das contas.
Se meu anti-depressivo me fizesse acordar com um gostinho doce de bolo de limão na boca, eu não teria que me arrastar todo dia da cama pra sujar as mangas do pijama de óleo ficar com as mãos azedas de gema de ovo tentando tirar casquinhas de ovo quebrado de dentro da minha receita. Eu estaria na minha cama, com gostinho de limão, me preparando para encarar o mundo quando me sentisse pronta.
Mas, não, minha boca está cheia de chorume e eu preciso sair da cama, mesmo sem estar preparada. Assim como na nossa vida inteira nós nunca estaremos preparados pra nada. Claro, o remédio tirou minha vontade incontrolavel de morrer, feito que não pode ser menosprezado. Mas muito além de tirar a vontade de morrer, não é o remédio que vai me devolver a vontade de viver. Sou eu mesma. Saindo da minha cama. Me sujando na cozinha. Me queimando na frigideira. Essa é a vida. Temos que sair da cama e se sujar todo dia para arranjarmos nosso proprio motivo de sair da cama.

Um comentário:

  1. De fato, essa é a vida. Compreender isso já é um grande passo rumo a um lugar onde não será mais necessário todo esse esforço diário pelo simples ato de viver (que de simples não tem nada). Desculpe-me pela intromissão, imagino que aqui seja um local meio íntimo de expressão e reflexão. Eu só gostei muito da sua forma de olhar para as coisas.

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