segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Criança Gótica

Sabe aquele momento que você está refletindo a respeito de coisas que aconteceram a muito tempo atrás e tem uma realização que muda completamente sua perspectiva sobre memórias antigas? Talvez você não tenha isso mas eu tenho o tempo todo. Talvez sejam muitos anos fazendo análise, talvez seja só porque sou uma pessoa nostálgica.

Esses dias eu estava refletindo sobre a minha infância . Eu sempre me retratei nas minhas memórias como uma criança descabelada e selvagem, que gostava de andar descalça, subir em árvores, comer plantas do chão e brigar com os outros. Acho que grande parte disso se da ao fato de eu ser uma adulta notoriamente descabelada que gosta de andar descalça, subir em árvores, comer plantas do chão e vem perdendo gradualmente o gosto por brigar (os últimos quatro anos esgotaram minhas reservas de indignação).

Foi então que eu tirei um momento para refletir não como eu me vejo como criança mas como as outras crianças provavelmente me viam. Nesse momento eu percebi que eu era uma criança gótica. E explico o porquê:

Eu não fiz amigos na escola até a sexta série do ensino fundamental, na maior parte do tempo eu estava sozinha. Assim, meus recreios da primeira série até a sexta  foram de isolamento nos 150 mil m² de Colégio Medianeira. A maior parte das crianças se dedicava a prática de esportes nesse meio tempo (meninos jogavam futebol, meninas pulavam corda e ambos jogavam caçador) e alguns grupos se reuniam para conversar e brincar de "faz de conta" e outras brincadeiras do gênero. O pátio ficava lotado de crianças correndo para todos os lados, subindo nos brinquedos e brincando. Até hoje eu sinto um enorme desconforto ao lembrar do concreto colorido com amarelinhas, uma rosa dos ventos e um mapa-múndi. Eu não era uma dessas crianças. Enquanto todos se reuniam para brincar nesse pátio eu me afastei nesses cinco anos para o limite até onde me era permitido ir. Para lá do Bosque 1,  no início do Bosque 2, era o limite de onde as crianças do primário podiam ficar e era para lá que eu ia. 

Você pode estar se perguntando "Mas Carol o que tem de gótico nisso? Você era uma criança antissocial, nada mais". Calma, você vai entender. A questão é que o inicio do Bosque 2 naquela época não era nada mais nada menos que o túmulo do Padre Oswaldo Gomes, o fundador do Colégio Medianeira. A história que eu conhecia é que o Padre tinha morrido em um acidente de avião e naquele túmulo de granito rosa e preto estava sepultado seu corpo. Mais sinistra ainda era a imagem dourada de Nossa Senhora ali exposta, toda amassada, com o rumor de que o Padre segurava a Santa na hora da morte. O tipo de coisa que só os católicos e seu insaciável culto a morte poderiam colocar em uma escola. E o tipo de ambiente em que a pequena Carol de seis anos se sentiu confortável em passar os seus intervalos de meia hora.

Quando eu paro para refletir eu não consigo entender se eu passava tanto tempo lá para não ficar junto de outras crianças porque eu não gostava delas ou se eram elas que não gostavam de mim. Provavelmente um pouco dos dois. A verdade é que muitas crianças tinham medo de ir até o túmulo do Padre. Por algum motivo eu não tinha esse medo. Eu não era uma criança corajosa, com frequência tinha pesadelos e ia dormir com minha mãe. A bruxa da Branca de Neve e zumbis eram o meu maior terror. Por algum motivo o túmulo do Padre não me despertava esse sentimento. Talvez fosse porque meus pais me levassem em cemitérios desde muito pequena. Talvez meu medo de ter que interagir com outras crianças fosse maior que o medo que eu deveria sentir do túmulo. Provavelmente um pouco dos dois.

 Eu eventualmente tinha outras aventuras, até porque a vida toda tive que ir para aulas de reforço no contraturno, quando a escola estava vazia e eu me sentia mais a vontade para explorar outros ambientes, como a biblioteca e a sala da direção quando não tinha ninguém. A diretora deixava a porta destrancada, mas pouca gente sabia disso. Quando eu não estava em movimento pelas minhas andanças pela escola vazia (inclusive durante o período de aula quando eu supostamente deveria estar no banheiro ou na enfermaria) eu estava no túmulo. Se alguém quisesse me procurar, pode ter certeza que ia encontrar a pequena Carol sentada no banco ou até mesmo na beira do túmulo do Padre. Normalmente comendo um bolinho de chocolate ou um pacote de batatas chips.

Se você encontrasse a pequena Carol nessa situação é capaz que ela ficasse por lá alguns minutos esperando você ir embora. Caso contrário ela quem iria levantar e ir embora de mal humor.

Por isso digo que eu era uma criança gótica.

 

 (P. Oswaldo Gomes, o homem cujo túmulo abrigou parte da minha infância.)