terça-feira, 30 de maio de 2017

Baba Yaga

(Bogovnik- Baba Yaga)


Ela terminou de comer o bolo e, sem se preocupar em dar parabéns para a aniversariante, voltou sozinha ao arquivo. O inquérito 132.800.16.10.84-09 estava no chão, onde ela havia o deixado antes de Cadu aparecer. Pensou se deveria ser produtiva e voltar a sua planilha de arquivamentos ou se deveria continuar matando tempo com a leitura intrigante. A resposta estava bem clara. Ela sentou no chão e voltou a folhar o primeiro volume do processo.
O corpo foi mandado para ser analisado por médicos legistas. Em paralelo ao trabalho dos legistas a equipe de investigação policial começou a coletar relato de testemunhas. Os moradores da região foram intimados para prestar declarações. As declarações não eram muito longas. Todas as cinco testemunhas relataram a mesma coisa. O terreno em que o corpo foi encontrado pertencia a um fazendeiro mas aquela região ao lado da estrada não era produtiva. Há alguns quilômetros da fazenda havia uma vila de agricultores. O lugar habitado mais próximo a cena do crime era um bar chamado Syrenka.
 A dona do bar Syrenka era uma uma senhora Polonesa chama Elwira Kowalski de sessenta anos. Elwira disse aos investigadores que na noite anterior a descoberta do corpo o bar foi frequentado pelos mesmos clientes de sempre e que o bar fechou as 22h como de costume. Quando questionada sobre ter visto algum carro diferente naquela noite, lembra ter visto uma caminhonete passando na frente do bar, identificada por um de seus clientes como sendo da marca chevrolet modelo veraneio. Elwira relatou que alguns clientes ficaram surpresos por ser um modelo de carro incomum na região. Quando os investigadores  perguntaram sobre a segurança da vila, Elwira relatou que nunca tinha ouvido falar de um caso de homicídio na região antes do aparecimento do corpo e que toda a vila estava muito abalada. Na pagina seguinte as declarações dela havia seus dados pessoais, RG, CPF, endereço, filiação, idade.
"Aqui está você!" Cadu entrou novamente no arquivo "O pessoal da secretaria está louco atrás de você, eles já estão indo embora e precisam trancar a sala do ponto".
"Não percebi que estava tarde. Obrigada por me procurar" ela agradeceu.
"Se não fosse eu te procurando nesse buraco você ficava sem bolo e sem pagamento" ele disse, brincando.
Eles entraram no elevador. O silêncio foi quebrado pela pergunta "Por que o caso Syrenka ficou famoso nos anos 80?"
"Hmmm"Cadu olhou para o teto, acessando suas memórias mais antigas "foi um conjunto infeliz de fatores. Acho que primeiro foi o choque de uma cidade ainda pequena que não estava acostumada com violência, ainda mais por ocorrer em uma pequena vila rural na região metropolitana. Depois disso, o mistério do corpo não identificado, sem nenhum registro de desaparecimento ou ninguém procurando por ele. Mas isso tudo seria esquecido em pouco tempo se um dos investigadores não tivesse morrido no ano seguinte da denuncia ser feita, com o inquérito ainda em fase de investigação. Pequenos jornais começaram a divulgar versões pouco prováveis, histórias de terror e assombração da alma atormentada de uma misteriosa mulher queimada que nunca foi enterrada e nunca teve descanso por isso matou o homem que guardava seu corpo em um laboratório."
"O corpo era de uma mulher?" ela perguntou.
"Ao que tudo indica, era sim. A medicina forense naquela época não era tão precisa quanto a de hoje."
Eles chegaram no andar da promotoria, bateram o ponto na secretaria e foram embora.
Cadú tinha uma moto que ele deixava em um estacionamento de que era mensalista. Os assessores não podiam usar o estacionamento do Ministério Público que era só para promotores, procuradores e carros oficiais. Ela foi para o outro lado, para pegar seu ônibus.
 Quinta-feira era dia de ir para o boxe. A academia ficava na Rua São Francisco, número 150.Era um prédio pequeno, de quatro andares, sufocado pelos vizinhos. A porta retrátil metálica era decorada por um belo grafite colorido representando um casal. Ironicamente, a academia de boxe era exatamente na frente de uma funerária chamada Capela da Luz. Separados por apenas uma rua estreita de paralelepípedos, a capela costumava ser mencionada como ameaça nos treinos mais acalorados no ringue.
Ela foi direto para o vestiário. Abriu a bolsa e encontrou seu almoço esquecido dentro do pote. Ela havia ficado tão empolgada com o inquérito do caso Syrenka que esqueceu de almoçar.
Ela tirou a roupa que estava usando, colocou o shorts largo de boxe, um top preto tão fechado e firme que desaparecia completamente com a saliência dos seus seios e uma regata com o desenho desbotado de uma caveira mexicana. Enfaixou as mãos com suas bandagens encardidas e ficou descalça.
Saiu do vestiário e sentou no chão em um canto do ginásio. Ela abriu seu pote de comida e pegou um par de rashis (palitinhos). Era melhor almoçar atrasado do que não almoçar.
Enquanto isso os rapazes chegaram na academia. Ela treinava com mais dois rapazes, mais novos. Um se chamava João e o outro ela não sabia o nome e não se importava o suficiente para tentar descobrir. Eram rapazes com a idade entre dezessete e vinte anos, ela não sabia bem. Alexandre, o professor, chegou. Alexandre era um homem com jeitos lusitanos. Ele era baixo, tinha ombros largos, sobrancelhas grossas e cabelo preto cheio. A pele era muito branca e coberta por tatuagens estilo old school. A barba era longa e penteada com óleo, os bigodes cheios voltados para cima. O cabelo, rockabilly era curto dos lados e com um típico topete natural de curitibano em cima. Ele já estava vestido de regata branca e bermuda, as luvas de boxe penduradas no ombro.
"E ai" ele cumprimentou "Mandando ver em um pré-treino?" ele disse brincando. Ela se dignou a responder com um olhar cansado. "Vamos ver o que você tem ai" ele disse se inclinando para ver. Ela mostrou o conteúdo do pote: Arroz japonês, omelete e brócolis. "Cuidado pra não ter uma indigestão com uma refeição tão pesada" ele disse irônico. "Não enche o saco" ela disse, afastando ele com um chute fraco na barriga. Ela terminou de almoçar e os meninos saíram do vestiário, prontos para o treino.
"Vamos lá, pessoal" Alexandre ordenou "Cinco minutos correndo na sala". Ela suspirou e reclamou "Eu já corri hoje de manhã". "Você sempre diz isso" respondeu Alexandre, de braços cruzados enquanto os três alunos corriam.
Alexandre foi até o rádio no canto da sala e colocou Denis Binder pra tocar. "Não! Esse CD de novo não" protestou João. "Vocês só reclamam!" exclamou Alexandre.
Depois do aquecimento de corrida a turma ainda teve que pular corda, fazer uma sequencia de burpee, abdominal e algumas flexões até começar o treino propriamente dito, com os alunos já brilhantes de suor. "Certo. Todo mundo de luva" Disse Alexandre "Jab e direto no saco de quarenta". O som do rádio foi abafado pelo som dos três jovens socando vigorosamente os sacos enormes de pancada. Três minutos contínuos. "Já estão cansados?" perguntou Alexandre "Jamais!" respondeu o rapaz que ela não sabia o nome, rindo. "Você vai precisar mais do que isso pra me fazer suar" brincou João, que já estava com a camiseta grudada ao corpo de suor. "Tá bom então, Nove rounds de trinta segundos! Vai!" a turma começou, sem tempo pra descansar a sala se encheu do som dos alunos bufando e os gritos de incentivo do professor "Vai lá, Bruno, fechadinho. Ombro no queixo." "Movimentem as pernas crianças! Coordena o movimento ai João" "Deu trinta, descansa, respira" "Vamo lá vamo lá, só mais quatro rounds, ta tranquilo" "Eu menti, agora faltam quatro, vamo, vamo, vamo" "Estica esse braço ai" "vinte nove, vinte oito, trinta! Podem ir tomar uma água". Ela foi até o canto, onde pegou sua garrafa plástica e deu alguns goles pequenos e fez  um bochecho. Naquele momento, água era a melhor coisa do mundo.
"Hora da diversão criançada, vamos de Sparring. João e Bruno, façam dupla". Ela colocou as luvas novamente e foi até Alexandre. Levantou a guarda, quase encostando as luvas na maçã do rosto. Ele foi medindo a distancia dela que dava espaço com passos largos, circulando. Alexandre desferiu um cruzado, quase de brincadeira, que ela esquivou. "Bela tatuagem" ele disse, olhando para o desenho coberto de papel celofane na coxa da aluna "Fez aonde? Na cadeia?" ele disse vindo pra cima "Não" Ela respondeu esquivando "eu fiz em casa". "Caralho, você é bem porra loca mesmo" Ele disse baixando um pouco a guarda. Ela aproveitou a abertura para entrar com uma sequencia. Ele abriu o suficiente para ela atingir um direto no estômago do professor, mas não com força o suficiente para causar qualquer dano. "Bela sequencia" ele incentivou "faltou usar mais o ombro". Ela não respondeu nada.
O par de olhos gelados da garota fitava o rosto do professor, tentando antecipar os movimentos dele. Ela já estava exausta do pré-treino, gotas salgadas de suor escorriam pela lateral do seu rosto, mas esse é o propósito do boxe, continuar mesmo depois de esgotado, manter os movimentos coordenados mesmo quando a vista já está embaçada. Ignorar a dor e manter o foco.
Alexandre abaixou a guarda e acenou com as luvas, gesticulando para ela ir para cima. Ela respirou fundo pela boca e soltou uma bufada de ar. Ele não esquivava, defendia com os braços fechando a guarda, para esquerda, para direita, onde ela tentasse atingir. Os braços dela já estavam pesados, mas ela tinha que manter a guarda alta. "Quer tomar uma cerveja ali no Jokers depois do treino?"ele perguntou. "Fuck yeah" foi a resposta que ela deu.
O professor não pegou leve. Mandou uma sequencia que ela não conseguiu desviar, defendendo com os braços que batiam contra seu corpo e seu rosto, na tentativa de permanecer firme. Ela tentou manter os olhos abertos, tentou dar um jeito de sair da sequencia, talvez um gancho mirando nos rins, se ela se encolhesse o suficiente. Mas sua tentativa foi frustrada por um uppercut que recebeu direto no queixo. Ela escutou o som dos próprios dentes batendo *clack*. Ela se afastou, perdendo o balanceamento da base. Ela chacoalhou a cabeça, para dispersar a força do golpe e recompor o equilíbrio. Levantou a guarda novamente, luvas contra o rosto. Recuperou o centro de equilíbrio, afastando os pés.
"Estamos bem por hoje" disse Alexandre. Os alunos tiraram as luvas. João foi até sua garrafa, bebeu alguns goles e despejou o resto da agua em cima da cabeça.
Ela foi para o vestiário feminino. Ele era pequeno por que não haviam muitas garotas que treinavam la. Era um banco de madeira com um armario de dois compartimentos um banheiro com um chuveiro, uma pia e uma privada. Ela pegou a mochila de dentro do armario, deixou as roupas dobradas em cima da tampa da privada e Tomou um banho. Usou o mesmo gel de banho para lavar os cabelos raspados e o corpo. Se secou com a toalha que havia trazido e saiu. Alexandre estava esperando de braços cruzados na porta da academia. Ele apagou as luzes e trancou a porta.
O Jokers era um bar mal iluminado, piso xadres branco e preto. As paredes eram decoradas com roupas de arlequim e era possível encontrar cartas de valete escondidas na parede, no chão, no teto, de baixo das mesas. Os dois foram até o bar de madeira.
"Me vê uma diabólica ipa"Alexandre pediu "o que você vai querer?" ele perguntou. "Um chope brahma" ela respondeu olhando para o bartender. Rapidamente o rapaz do balcão trouxe os dois copos em forma de tulipa cheios de chope gelado com o colarinho cremoso. "Saúde"brindou Alexandre. Os dois levantaram o copo e beberam.
"Ah... Isso é que eu chamo de encerar o dia"ele disse, contemplando o copo molhado. Ela assentiu com a cabeça sem fazer contato visual.
"E então, me mostre essa obra de arte" ele disse olhando para a perna dela. Ela levantou um pouco o shorts, mostrando o desenho de um quadrado subdividido em quatro com alguns compartimentos diferentes. Em baixo do quadrado estava escrito "Баба-яга" com uma letra de traços grossos. "que merda é essa?" ele disse rindo. "É um Bogovnik" ela respondeu. "Saúde" ele disse "e isso que está escrito aqui em baixo?" "Baba Yaga" ela respondeu. "Caramba, já estou desistindo" ele disse. Ela suspirou e reuniu paciência para explicar "O Bogovnik representa a proteção e a Baba Yaga é um ser mitológico que protege os bons e castiga os maus. O conjunto, significa basicamente me proteja da Baba Yaga ou que a Baba Yaga me proteja. Na minha cabeça é algo legal"ela respondeu falando dentro do copo para tomar o chope.
"Por que você só não fez uma tatuagem mais simples como o símbolo do infinito, uma estrela ou um coração flechado?" ele perguntou."Qual seria a graça disso?" disse contrariada. 
"E você fez isso em casa?" ele perguntou. Ela consentiu com a cabeça, olhando para frente. "Como isso, meu Deus?"ele perguntou. "Você só precisa de uma caneta, uma agulha, uma colher, um motorzinho de 18 volts e tinta" ela respondeu "Com você falando parece fácil" ele disse.
"Que tal eu ir pra sua casa e você fazer uma tatuagem na minha perna?"ele disse brincando "Estou com saudades do Fritz e do Vanderlei".
Ela deu uma risada silênciosa e fez um sinal negativo com a cabeça.
"Vai se foder, Alexandre."

(Alexandre, o instrutor de boxe)




terça-feira, 23 de maio de 2017

Syrenka


O despertador tocou A Day To Remember - Mr Highway's Thinking About The End. Ela acordou com Fritz Haber dormindo em seu travesseiro. Levantou da cama, indo descalça até a sala. O celular estava na cozinha do lado da cafeteira. A cafeteira estava programada para preparar o café as cinco e quinze da manhã. Ela não desligou o despertador, deixou o celular tocando enquanto foi até a geladeira pegar a garrafa de leite de soja. Foi até o armário e pegou uma caixa de all-bran, o clássico cereal integral de trigo da Kellogg’s. Ela serviu o leite e o cereal em uma tigela e então encheu uma grande caneca de café preto. Sentou na bancada da cozinha e começou a comer de olhos fechados.
Vanderlei estava acordado. O enorme galgo espanhol ficou de pé  para colocar a cabeça sobre suas cochas. Ela ignorou o cachorro.
Quando terminou de comer, tirou a camiseta de pijama e colocou um top esportivo, um conjunto de moletom e seus tênis de corrida. Vanderlei começou a latir e a saltar, empinando o quadril. Ela pegou a guia, prendeu na coleira do cão e saiu para sua corrida matinal.
Desceu os dois lances de escada escutando os passos do cachorro e o tilintar da coleira. O sol ainda não havia nascido e estava garoando. Ela colocou o capuz sobre a cabeça.
A cidade estava silenciosa, apenas alguns carros passando na rua. O chão estava molhado e escorregadio. A iluminação dos postes ainda estava ligada, ela podia ver as gotas de garoa caindo lentamente nos feixes de luz. Correu pela Desembargador Benvindo Valente do lado do muro coberto de hera do cemitério municipal. Podia enxergar a abóbada de alguns dos mausoléus. Passou pela entrada de alvenaria pichada do cemitério. Alguns hibiscos plantados na calçada estavam floridos. Foi até a praça triangular com o clássico poste de iluminação de ferro republicano de Curitiba.  Seguiu pela Trajano Reis. Passou pelo terreno baldio do lado do SINTRACON, onde cresce uma enorme araucária coberta de líquens. Então virou na Inácio Lustosa, bem na esquina da baladinha Peppers. Correu mais quatro quadras até passar pelo shopping Muller e foi até  a entrada do passeio público. O parque ainda estava fechado, mas seguiu pela ciclovia. Já estava ofegante e suando, mas Vanderlei seguia contente, sem demonstrar sinal de cansaço, em uma marcha leve. Suas patas longas de galgo permitiam que ele andasse com calma na velocidade em que ela corria com esforço. Correu até a esquina do memorial árabe e virou na rua passando entre a casa do estudante e o colégio estadual, com sua murada colorida coberta de grafites. Quando avistou o Largo Bittencout, Vanderlei parou para fazer xixi. Depois dele terminar ela continuou dando a volta no passeio público. Passou pelo lado do lago, que estava coberto de vapor. Alguns passarinhos estavam cantando, escondidos em algum lugar sobre as árvores do parque. Passou pela frente do pensionato Novo Lar, com a tintura toda descascada.  As árvores estavam gotejando.
Chegaram novamente no arco da entrada do passeio publico e correram todo caminho de volta para o apartamento. Foram exatos 3,7 km e Vanderlei não parecia cansado.  Ela, por outro lado estava ofegante, com a face vermelha e com suor escorrendo da testa. Eram seis da manhã quando voltou para o apartamento. Trancou a porta e tirou Venderlei da coleira. Pegou a comida de cachorro no armário e deu para ele em um pote de concreto que ficava atrás do sofá. Fritz Haber chegou miando, exigindo sua comida e protestando por não ter tido a preferencia. Ela pegou a comida de gato de dentro do armário e deu para ele em seu pequeno pote de plástico, na bancada da cozinha.
Ela tirou as roupas cheias de suor e jogou  no chão. Ligou o chuveiro elétrico e esperou a água esquentar. Quando viu que o vidro do box estava todo embaçado, entrou. Deixou a àgua quente limpar todo o sal de seu suor, então pegou o gel de banho e espalhou pelos seus cabelos raspados, rosto, ombros, axila. Pegou mais um pouco de gel e espalho pelos braços e pernas. Equilibrou-se em uma das pernas para lavar o pé e repetiu o processo para o outro pé. Ficou mais um tempo em baixo da àgua, simplesmente curtindo a sensação de limpeza. Desligou o chuveiro e se secou com uma toalha. Vestiu meias, uma calça jeans rasgada e uma camiseta desbotada do Tazz, o looney toon. Pegou seu laptop e sentou no sofá. Vanderlei sentou perto dos seus pés enquanto Fritz Haber estava sentado em cima do encosto. Ela colocou o headfone e selecionou uma playlist de grunge no spotfy.  Fritz Haber começou a lamber seu cabelo molhado, mas ela não reagiu. Começou a jogar word of warcraft. Ela tinha um Troll Xamã. Ela costumava jogar como elemental, mas agora que atingiu um level maior começou lentamente a se aperfeiçoar em encantamentos. Ela já tinha terminado milhares de quest e estava começando a entrar em partys para invadir dungeons, mas se irritava com facilidade com os outros jogadores. Usou uma série de macros para o computador jogar sozinho automaticamente enquanto ela foi até a geladeira para comer um caqui. Quando terminou a fruta, limpou a boca com as costas da mão.
Chamou Vanderlei para sair novamente, fazer suas necessidades. Foi até a rua e deu o comando para o cão: “pode ir” . Ele fez o que tinha que fazer e ela recolheu a sujeira em uma sacola de papel, então jogou no lixo.
Subiu novamente para seu apartamento e aproveitou para limpar a caixinha de Fritz Haber. Depois de tirar todo lixo de casa, decidiu tomar outro banho.
Ela tomava, em média, três banhos ao dia. Quando eram onze horas ela pegou seu almoço na geladeira colocou a mochila nas costas e foi trabalhar.
Pegou o ônibus.
Desceu duas quadras perto do trabalho e pegou o elevador para bater o ponto na sala da secretaria.
Voltou para o arquivo. Ascendeu a luz, que piscou algumas vezes antes de ascender definitivamente.
Suspirou e voltou a catalogar os processos. Abriu uma gaveta com cuidado para os processos não despencarem. A poeira irritava seus olhos, que ficaram vermelhos. Então algo diferente chamou sua atenção. Havia um inquérito que não estava em ordem no arquivo, mas sim abandonado solitário sobre um armário. Ela subiu na ponta dos pés para pegar a pilha maciça de papel.
Era um processo com a capa de papel colorido azul e plastificado, com cerca de cinco volumes. Ele parecia ser mais novo que os outros processos que estavam na sala. Ela leu a etiqueta da capa, datilografada processo “132.800.16.10.84-09”.
O processo foi instaurado em dezesseis de outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.  O promotor era João Carlos Piccianne. Tratava-se de uma investigação de um possível assassinato com ocultação de cadáver, sem suspeitos.
Ela abriu o inquérito e começou a ler. A primeira pagina era um Boletin de Ocorrência relatando o aparecimento de um corpo na região de Piraquara. Um senhor chamado Bernardo Wiśniewski estava praticando tracking com um amigo, Arno Gruber, a caminho da trilha Torre Amarela quando sentiu um cheiro forte de carne queimada vindo do terreno baldio a beira da estrada. Ele relatou ter encontrado um corpo parcialmente coberto com uma lona presa por pedras. O corpo estava carbonizado e não era possível de se identificar. O homem relatou ter voltado para o carro e ido imediatamente para a delegacia, sem contar para mais ninguém. O boletim de ocorrência trazia os dados pessoais do declarante, como seu numero de RG, CPF, filiação, endereço e descrição física. A segunda pagina era o Boletim de Ocorrência de Arno Gruber, que também relatou estar a caminho da trilha Torre Amarela quando o amigo sentiu um forte cheiro que descreveu como "carne queimada e querosene" e relatou a descoberta do corpo coberto por uma lona em um terreno baldio perto de uma vila na área rural de Piraquara. E então seus dados pessoais. Os declarantes eram dois homens caucasianos, de meia-idade e parcialmente calvos.
O documento seguinte a ser juntado foi o mandado do delegado para a equipe de investigadores legistas ir até o local, no mesmo dia.
Foi então que ela viu o relatório da equipe de investigação. Uma série de fotos em preto e branco do local. Parecia ser um terreno parcialmente descampado, com mato alto e algumas árvores pequenas. Ela viu fotos da lona presa por pedras não maiores que um punho fechado e uma parte levantada. Haviam marcas de pneu na lama a alguns metros de distancia e, aparentemente, um guarda-chuva quebrado foi encontrado no local também.
E então fotos do corpo. O corpo estava de bruços, com os braços rígidos em frente ao peito. A roupa derreteu e grudou em sua pele. O cabelo também estava todo queimado e era possível ver os dentes por dentre os lábios esticados do morto.
Cadu entrou na sala. Ela espremeu o papel junto ao peito. “Vim dar uma olhada em como andam os arquivamentos, está tudo bem?” ela fez que sim com a cabeça.
“o que é isso que você está segurando?” ele perguntou. Ela relaxou os braços, mostrando a capa do inquérito. Ele estendeu a mão e pegou o volume.
"Veja só, é o caso Syrenka. Isso aqui teve muita cobertura da mídia nos anos 80” ele disse. “O que aconteceu?” ela perguntou. “Ninguém sabe” Cadu respondeu e entregou o volume novamente para ela “com o tempo o caso deixou de ser lamentado e foi  aos poucos sendo esquecido. Quer comer bolo? Foi aniversário de uma assessora e estão dando uma festinha no nono andar”.
Ela pensou um pouco e decidiu que um bolo era uma boa ideia.  Eles pegaram o elevador e foram até a festinha. O bolo era de floresta negra e estava úmido como se houvesse sido guardado na geladeira. Mas estava gostoso. Ela comeu o bolo mas não conseguia parar de pensar no inquérito. Ela queria ler mais.




(Vanderlei, o galgo espanhol)

domingo, 21 de maio de 2017

Introdução



As mãos dela estavam cheias de pó.
"Acho que nós deveríamos usar luvas para fazer isso" disse Cadu.
Carlos Eduardo (vulgo, Cadu) era um assessor. Não era seu chefe, oficialmente, mas era quem trabalhava todo dia ao seu lado, orientando seu trabalho.
Eles estavam em uma sala mal iluminada, um arquivo. Tudo ali remetia ao Brasil dos anos oitenta. Os arquivos eram de ferro pintados com uma tinta cor de areia clara que estava descascando, o piso era de taco, meio podre, no teto pendia um plafon de vidro opaco, emitindo uma luz amarela fraca de uma lâmpada incandescente.
Ela abriu um arquivo. O compartimento deslizou com um rangido metálico. Os papeis despencaram pelo fundo da gaveta. Ela pode ver que o suporte por onde os processos estavam catalogados era de plástico e estava apodrecido. As folhas bateram no chão, levantando poeira e um cheiro adstringente de mofo. Ela espirrou alto, cobrindo a boca com o braço.
"E mascaras também" Acrescentou Cadu.
Ela juntou alguns dos papeis com as mãos. A pilha de documentos que sobrou ainda tinha a altura de sua canela. O papel estava quebradiço e manchado de ferrugem. As folhas do meio estavam cobertas de mofo verde-azulado.
"Janeiro de mil novecentos e sessenta e dois" leu para Cadu, com a voz baixa.
"Provavelmente a maioria dos processos já está prescrito" ele disse "queria simplesmente poder jogar tudo fora".
Ser subalterno é uma tarefa ingrata, mesmo nas carreiras públicas.
Aquele arquivo estava esquecido no antigo prédio da promotoria. O ministério publico não renovou o contrato de aluguel com o dono do prédio. Finalmente a sede nova do centro cívico estava pronta. Como toda obra pública, demorou mais de uma década para ser finalizada. Ela podia lembrar de quando era criança e passava por um enorme terreno vazio no centro da cidade e perguntava para o avô "por que não tem nada aqui?". "É um terreno do governo"ele respondia. "E por que o governo não faz um parque ai? Que nem o passeio público" ela sempre fazia a mesma pergunta e o avô sempre inventava uma historia diferente "o governo esqueceu que tem esse terreno", "o governo está sem dinheiro", "estão fazendo um esconderijo subterrâneo, você só não consegue enxergar porque está de baixo da terra", "estão deixando o espaço livre para estacionar os discos-voadores" e na sua cabeça infantil todas faziam bastante sentido, mesmo assim ela perguntava a mesma coisa toda vez que por ali passava.
Aquele arquivo velho lembrava um pouco seu avô. Lembrava de quando ele sentava em sua poltrona ao lado da janela para ler os já extintos jornais impressos. Ela gostava de fazer as palavras-cruzadas. Ela queria ler aqueles arquivos e entender o que eles eram e porque simplesmente não foram para o arquivo morto como todos os outros. Ninguém realmente sabia o que era aquela sala, só se preocuparam em descobrir agora que já estavam de mudança. Inicialmente os procuradores decidiram mandar a equipe de limpeza jogar tudo fora, mas então um promotor teve a brilhante ideia de arquivar todos eles de forma oficial, afinal, o conselho superior ficaria muito feliz de ver o volume de trabalho que aquela promotoria estava dando conta, mesmo que fosse só arquivamento atrás de arquivamento por preclusão. E quem é qualificado o suficiente para esse tipo de tarefa? A estagiária.
Essa estagiaria especificamente era perfeita para o trabalho. Ela não era boa com o público, que se assustava com sua aparência, muito menos com os processos judiciais pois demorava semanas para fazer o que um outro estagiário levaria dias. No entanto, não podia ser mandada embora porque havia entrado por concurso publico e isso lhe dava certa estabilidade.
"Bem" disse Cadu "tenho que voltar para a promotoria. Logo, logo eu volto ver como você está. Divirta-se" e então foi embora.
Ela ficou sozinha na sala, deu um longo suspiro e começou a separar os arquivos. Tinha um tablet aberto em uma planilha onde ela teria que anotar o numero do procedimento, a data de instauração, o promotor que abriu o caso, o objeto de investigação e a ultima movimentação. Ela sabia que talvez não conseguisse todas as informações que precisava de todos os processos que ali estavam. Se ela simplesmente jogasse metade deles fora, sem ver do que se tratavam, ninguém perceberia, ninguém sentiria falta. Se não haviam sentido falta todos esses anos, por quê sentiriam agora? Mas ela não faria isso. Ela adorava estar sozinha naquela sala, com vários e vários inquéritos datilografados e carimbados a mão. Preferia ficar ali sozinha do que trabalhando na sala com o resto da promotoria.
Lentamente ela ia preenchendo sua planilha. Números, nomes, delitos... As vezes se perdia em algumas paginas. Lia alguns recortes de jornal anexados aos inquéritos, colocava os negativos contra a luz para revelar a imagem que escondiam, media as próprias digitais nas digitais carimbadas nas folhas.
"processo 53.800.27.01.62-02", " Promotor Cristovão Botelho da Costa", "Homicídio doloso qualificado", "ultima movimentação 09/10/1975". Já havia esvaziado a primeira gaveta. Checou o celular e viu que já estava na hora de ir embora.
Pegou o elevador e foi até a secretaria, bater o ponto. Pegou sua mochila de costas no armário, guardou o tablet dentro. Acenou com a cabeça para os funcionários da secretaria e saiu em silêncio. Pegou o elevador até o térreo.
Ela pegou o headfone de dentro da mochila, colocou ele nas orelhas e conectou no celular. Selecionou a playlist do Nirvana no spotfy e deu play. Cobriu-se com o capuz do moleton e seguiu caminho. Estava chovendo. Ela andou algumas quadras na calçada acidentada do centro da cidade. Haviam pedras que estavam soltas e quando se pisava nelas, espirravam lama. Ela tentou ficar de baixo das marquises para não se molhar tanto. Chegou no ponto de ônibus e ascendeu um cigarro. Tragou longamente, enchendo o peito de nicotina. Sentiu que tinha alguém a observando. Ela olhou para o lado e uma senhorinha de cabelos brancos desviou o olhar.
Mais algumas tragadas e o ônibus apareceu na esquina. Ela fez sinal para ele parar e apagou o cigarro na sola do all-star. Guardou o finzinho do cigarro de volta na cartela e embarcou. Passou o cartão transporte, foi para o fundo da condução e ficou de pé, segurando-se em um cano metálico. Os vidros estavam todos embaçados e o chão estava molhado, com pegadas lamacentas de sapatos. Ela se concentrou na musica que estava ouvindo. Foi até ao Bairro São Francisco. Deu sinal para o ônibus parar e saltou lá de dentro. Andou mais algumas quadras. Um casal de moradores de rua dormia abraçado envolto em cobertas de baixo de uma marquise. O cachorro deles levantou as orelhas, atento, quando ela passou, mas não latiu.
Parou em frente a uma porta retrátil de ferro pichada. Pegou o molho de chaves de dentro da mochila e abriu a porta. Entrou e trancou novamente a porta atrás de si. A luz do saguão acendeu sozinha, iluminando o estreito lance de escadas a sua frente. Subiu um andar, passou pelas portas de seus dois vizinhos de baixo. Um deles tinha um capacho e uma plaquinha de bem-vindo. O outro não tinha nada de convidativo. Ela subiu mais um andar. Chegou na porta de seu próprio apartamento. Pegou as chaves novamente e entrou. Era uma quitinete, pequena e mal decorada. Seu gato, Fritz Haber, a recebeu na porta, miando. Era um donskoy, ou seja, um gato pelado. Ele tinha a pele rosada e grandes olhos azuis. Ele se esfregou em suas pernas, carinhoso, ronronando.
Ela trancou a porta de casa e tirou a roupa. Ficou só de calcinha e pegou uma camiseta tamanho G que estava jogada no braço do sofá. A camiseta desbotada estava estampada com letras do alfabeto gótico escrito "too cool to be true". Seu cachorro, Vamderlei estava dormindo encolhido nas almofadas do sofá. Vamderlei era um enorme galgo espanhol castanho tigrado, com oito anos de idade, que foi usado para competir em corridas até não aguentar mais por estar velho. Ele estava na fila para ser sacrificado quando foi resgatado e rebatizado. Seu primeiro nome foi Jasse Owens, apologia ao velocista negro que venceu as olimpíadas de Berlin durante a Alemanha nazista. Por considerar que nome do cachorro remetia a seu passado obscuro de maus tratos além de ser um pouco racista, ela o rebatizou em homenagem a Vamderlei Cordeiro de Lima, o atleta brasileiro que, mesmo perdendo a liderança por ser interrompido por um fanático nacionalista terminou a maratona recebendo a medalha de bronze.
Ela ligou o celular no Bluetooth e conectou na caixa de som. Selecionou uma playlist de musica eletrônica estilo lounge. Ela foi até a cozinha onde encontrou pão quentinho em sua maquina de pão. Ela fritou um ovo e se serviu. A gema estava liquida. Ela separava pedaços do miolo do pão para embebedar na gema e comer. Depois de terminar o ovo e uma fatia de pão colocou o prato na pia, junto de mais louça suja.
Ela deu um longo bocejo, se espreguiçando e foi até seu quarto. Jogou-se na cama que estava bagunçada com uma coberta de lã, um travesseiro de espuma e o lençol de elástico soltando do colchão. Fritz Haber saltou junto dela, subindo e se acomodando em sua lombar. Ela decidiu dar o dia por encerrado. Era suficiente por hoje.
(Desenho que eu fiz da protagonista)