domingo, 1 de dezembro de 2024

Pinheirinho Decolonial do Caos

Fim de ano chegando. Cerca de 7,9 bilhões de pessoas vão se unir e comemorar o ano novo do calendário Gregoriano. O natal, não tão popular, é comemorado por 2,5 bilhões. Essas datas são um dos poucos momentos que restam ao homem moderno para marcar os ciclos. O natal por exemplo surgiu no hemisfério norte e era a data onde os povos pagãos se uniam para ascender fogueiras, comer castanhas, frutas secas e outros alimentos calóricos uma vez que era a noite mais longa do ano. O calor, as luzes, a comida e o calor humano eram essenciais para a sobrevivência dessas pessoas já que o inverno era um período marcado por depressão sazonal, fome, doenças e morte. Acredito que um dos motivos do porquê terem escolhido justamente essa época do ano para marcar o final do ano era, superada a noite mais longa e mais fria do ano, encerrar aquele ciclo de tristeza e iniciar um novo, com esperança. Como se os anciões falassem para os mais novos "Pronto, o pior já passou, vamos deixar nosso desânimo e nossas dores para traz e iniciar um novo ciclo com esperança e energia de viver".
Caso você não tenha percebido até hoje, nós aqui em terras tupiniquins também temos nossa data para ascender fogueiras, comer alimentos calóricos e dançar de barriga coladinha. São as festas juninas/julinas, sendo que o dia de São João marca nossa noite mais longa do ano. Não é a toa que o ano-novo tupi-guarani ocorre justamente em agosto, o Ara Pyaú (tempo novo). O ano novo e o natal são datas trazidas pelos colonizadores já sincretizadas com uma mensagem cristã bastante deturpada (estudos bíblicos apontam que jesus nasceu em março, não em dezembro). Os cristãos não satisfeitos em apagar os significados natalinos também apagaram os significados das festas juninas/julinas. 
Ao meu ver, comemorar o fim do ano em plano verão é uma prática terrível para nós moradores do hemisfério sul. O verão é um momento onde nossa energia está lá em cima, nossas plantações estão em pleno vigor e nos estamos conectados com aquilo que semeamos na primavera. Não faz sentido interromper um ciclo nesse momento. O renascimento só pode ocorrer depois da morte e não faz sentido nós matarmos nosso ano simbolicamente quando ele está no auge de sua energia.
 Se eu vou me decolonizar a ponto de parar de celebrar o natal e o ano novo em dezembro? Provavelmente não. Para mim é importante poder viver esse momento em sintonia com as pessoas que me cercam, sem contar que as férias coletivas do meu trabalho não são em julho mas sim em dezembro.
Essa reflexão toda levou muitos anos para acontecer aqui dentro de mim mas eu sei que eu sempre senti um grande desconforto nessa época do ano. Usar enfeites de boneco de neve, fitas de veludo e toucas vermelhas com pom-poms felpudos sempre pareceu muito errado para mim que chego nessa época do ano suando em bicas e com as chinelas no pé. Outra coisa que sempre me incomodou profundamente foi enfeitar árvores de plástico. A ideia da árvore de plástico por si só sempre me soou muito errada. Acho que a árvore de plástico representa bem demais o natal moderno que já deixou de ser uma celebração de marcar os ciclos para uma amalgama do que sobrou de simbolismo cristão com uma dose cavalar de consumo capitalista. A árvore padronizada, que nunca envelhece, sem defeitos e que pode ser reconhecia a distância em qualquer lugar. A árvore de natal imita nossas comidas padronizadas e cheias de conservantes e as nossas roupas onde a logomarca pode ser reconhecida de longe e que não podem apresentar sinais de uso, precisam estar sempre novas. Rasgou? Joga fora e compra outra. Enjoou? Compra outra.
Sei que eu na inocência da minha infância eu ficava me imaginando enfeitando uma árvore de verdade. E uma árvore viva! Não uma árvore cortada como os gringos montavam nos filmes. Cada ano eu reimaginava minha árvore. Talvez uma palmeira de natal, ou uma araucária de natal! Os enfeites seriam conchas já que verão é época de ir para praia e a ceia seria uma caranguejada já que é época de uçá!
Esse dia chegou. Me mudei da casa dos meus pais e vim morar com meu ajuntado no nosso próprio apartamento. Quando vi a primeira loja precocemente arrumada para o natal o bicho decolonial já começou a me dar coceira e me vi tendo que realizar minha visão, para não decepcionar a Carol criança.
A forma que a Carol adulta com ajuda de seu fiel companheiro Eduardo tiveram de realizar o primeiro pinheirinho decolonial foi ir até a chácara dos meus pais, colher um galho de pinheiro nativo (também conhecido como podocarpo) e fazer uma estaquia em um vazo. Vamos torcer para que ele sobreviva. Minha mãe muito querida me doou pequenas bolinhas vermelhas e luzinhas de natal, mas ainda queremos fazer nossos próprios enfeites.
O processo de arrumar o pinheirinho decolonial é sem dúvida muito diferente da árvore de plástico. Primeiro porque o pinheirinho decolonial veio cheio de incetinhos nativos decoloniais e minha cabeça muito colonizada, sem reconhecer se são insetos que podem ser perigosos para mim ou para minha casa,  logo procedeu um genocídio bem colonial. O pinheirinho decolonial nos faz perceber quão profunda são as raízes coloniais. Outra coisa que aconteceu foi perceber que nós pessoas colonizadas temos uma tolerância baixa a imperfeições e imprevistos. Quando eu e o Edu estávamos colocando as luzinhas, vendo que essa árvore que não é industrializada e não tem um padrão na colocação dos galhos, um sentimento de desespero se apossou de nós e logo depois veio o desanimo. Foi nessa hora que o Edu, que tem raízes nativas mais profundas que as minhas, me passou uma grande sabedoria originária "Carol, parte de ter um pinheirinho decolonial é entender que ele vai ser caótico mesmo e está tudo bem". As tropas recuperaram a moral nesse momento. Na hora de colocar as bolinhas eu senti uma ternura enorme pelo meu pinheirinho decolonial do caos. Colocar enfeitinhos em seus galhinhos fez eu sentir que estava fazendo carinho nele e, derrepente, enfeitar uma árvore fez muito sentido. Falei para o Edu "na verdade enfeitar uma árvore faz todo sentido do mundo". Edu concordou comigo e completou "acho que deve ser uma das prática mais antigas da humanidade que se mantém ate hoje". Podiamos ter parado por ai. Entretanto, eu, colonizada que sou, quis insistir e lutar contra a decolonialidade da natureza e peguei arames para tentar endireitar partes muito tortas da árvore. O Edu, com sua sabedoria nativa se recusou a participar dessa parte e eu, colonizada, recebi a quarta e última lição do pinheirinho decolonial do caos. Ao tentar prender (com toda a delicadeza que minhas mãos coloniais conseguiam exercer) seus galhos naturalmente tortos e perfeitos eu machuquei a árvore, arranquei algumas folhas e quebrei alguns galhos (coisa impossível se se fazer em uma árvore de plástico) até quebrar o ramo do topo do pinheirinho, simplesmente a parte mais importante de todo pinheirinho de natal. Respirei fundo. Dei um passo para trás. Finalmente, aceitei a o pinheirinho decolonial do caos como ele é. Tortinho, perfeito em suas imperfeições e muito vivo. As feridas que fiz no pinheirinho e em mim mesma serviram para me lembrar que sempre vamos errar ao tentar algo novo. O pinheirinho decolonial do caos está piscando aqui do meu lado enquanto eu escrevo essa crônica, aguantando firme e te desejando um feliz natal.