domingo, 21 de maio de 2017

Introdução



As mãos dela estavam cheias de pó.
"Acho que nós deveríamos usar luvas para fazer isso" disse Cadu.
Carlos Eduardo (vulgo, Cadu) era um assessor. Não era seu chefe, oficialmente, mas era quem trabalhava todo dia ao seu lado, orientando seu trabalho.
Eles estavam em uma sala mal iluminada, um arquivo. Tudo ali remetia ao Brasil dos anos oitenta. Os arquivos eram de ferro pintados com uma tinta cor de areia clara que estava descascando, o piso era de taco, meio podre, no teto pendia um plafon de vidro opaco, emitindo uma luz amarela fraca de uma lâmpada incandescente.
Ela abriu um arquivo. O compartimento deslizou com um rangido metálico. Os papeis despencaram pelo fundo da gaveta. Ela pode ver que o suporte por onde os processos estavam catalogados era de plástico e estava apodrecido. As folhas bateram no chão, levantando poeira e um cheiro adstringente de mofo. Ela espirrou alto, cobrindo a boca com o braço.
"E mascaras também" Acrescentou Cadu.
Ela juntou alguns dos papeis com as mãos. A pilha de documentos que sobrou ainda tinha a altura de sua canela. O papel estava quebradiço e manchado de ferrugem. As folhas do meio estavam cobertas de mofo verde-azulado.
"Janeiro de mil novecentos e sessenta e dois" leu para Cadu, com a voz baixa.
"Provavelmente a maioria dos processos já está prescrito" ele disse "queria simplesmente poder jogar tudo fora".
Ser subalterno é uma tarefa ingrata, mesmo nas carreiras públicas.
Aquele arquivo estava esquecido no antigo prédio da promotoria. O ministério publico não renovou o contrato de aluguel com o dono do prédio. Finalmente a sede nova do centro cívico estava pronta. Como toda obra pública, demorou mais de uma década para ser finalizada. Ela podia lembrar de quando era criança e passava por um enorme terreno vazio no centro da cidade e perguntava para o avô "por que não tem nada aqui?". "É um terreno do governo"ele respondia. "E por que o governo não faz um parque ai? Que nem o passeio público" ela sempre fazia a mesma pergunta e o avô sempre inventava uma historia diferente "o governo esqueceu que tem esse terreno", "o governo está sem dinheiro", "estão fazendo um esconderijo subterrâneo, você só não consegue enxergar porque está de baixo da terra", "estão deixando o espaço livre para estacionar os discos-voadores" e na sua cabeça infantil todas faziam bastante sentido, mesmo assim ela perguntava a mesma coisa toda vez que por ali passava.
Aquele arquivo velho lembrava um pouco seu avô. Lembrava de quando ele sentava em sua poltrona ao lado da janela para ler os já extintos jornais impressos. Ela gostava de fazer as palavras-cruzadas. Ela queria ler aqueles arquivos e entender o que eles eram e porque simplesmente não foram para o arquivo morto como todos os outros. Ninguém realmente sabia o que era aquela sala, só se preocuparam em descobrir agora que já estavam de mudança. Inicialmente os procuradores decidiram mandar a equipe de limpeza jogar tudo fora, mas então um promotor teve a brilhante ideia de arquivar todos eles de forma oficial, afinal, o conselho superior ficaria muito feliz de ver o volume de trabalho que aquela promotoria estava dando conta, mesmo que fosse só arquivamento atrás de arquivamento por preclusão. E quem é qualificado o suficiente para esse tipo de tarefa? A estagiária.
Essa estagiaria especificamente era perfeita para o trabalho. Ela não era boa com o público, que se assustava com sua aparência, muito menos com os processos judiciais pois demorava semanas para fazer o que um outro estagiário levaria dias. No entanto, não podia ser mandada embora porque havia entrado por concurso publico e isso lhe dava certa estabilidade.
"Bem" disse Cadu "tenho que voltar para a promotoria. Logo, logo eu volto ver como você está. Divirta-se" e então foi embora.
Ela ficou sozinha na sala, deu um longo suspiro e começou a separar os arquivos. Tinha um tablet aberto em uma planilha onde ela teria que anotar o numero do procedimento, a data de instauração, o promotor que abriu o caso, o objeto de investigação e a ultima movimentação. Ela sabia que talvez não conseguisse todas as informações que precisava de todos os processos que ali estavam. Se ela simplesmente jogasse metade deles fora, sem ver do que se tratavam, ninguém perceberia, ninguém sentiria falta. Se não haviam sentido falta todos esses anos, por quê sentiriam agora? Mas ela não faria isso. Ela adorava estar sozinha naquela sala, com vários e vários inquéritos datilografados e carimbados a mão. Preferia ficar ali sozinha do que trabalhando na sala com o resto da promotoria.
Lentamente ela ia preenchendo sua planilha. Números, nomes, delitos... As vezes se perdia em algumas paginas. Lia alguns recortes de jornal anexados aos inquéritos, colocava os negativos contra a luz para revelar a imagem que escondiam, media as próprias digitais nas digitais carimbadas nas folhas.
"processo 53.800.27.01.62-02", " Promotor Cristovão Botelho da Costa", "Homicídio doloso qualificado", "ultima movimentação 09/10/1975". Já havia esvaziado a primeira gaveta. Checou o celular e viu que já estava na hora de ir embora.
Pegou o elevador e foi até a secretaria, bater o ponto. Pegou sua mochila de costas no armário, guardou o tablet dentro. Acenou com a cabeça para os funcionários da secretaria e saiu em silêncio. Pegou o elevador até o térreo.
Ela pegou o headfone de dentro da mochila, colocou ele nas orelhas e conectou no celular. Selecionou a playlist do Nirvana no spotfy e deu play. Cobriu-se com o capuz do moleton e seguiu caminho. Estava chovendo. Ela andou algumas quadras na calçada acidentada do centro da cidade. Haviam pedras que estavam soltas e quando se pisava nelas, espirravam lama. Ela tentou ficar de baixo das marquises para não se molhar tanto. Chegou no ponto de ônibus e ascendeu um cigarro. Tragou longamente, enchendo o peito de nicotina. Sentiu que tinha alguém a observando. Ela olhou para o lado e uma senhorinha de cabelos brancos desviou o olhar.
Mais algumas tragadas e o ônibus apareceu na esquina. Ela fez sinal para ele parar e apagou o cigarro na sola do all-star. Guardou o finzinho do cigarro de volta na cartela e embarcou. Passou o cartão transporte, foi para o fundo da condução e ficou de pé, segurando-se em um cano metálico. Os vidros estavam todos embaçados e o chão estava molhado, com pegadas lamacentas de sapatos. Ela se concentrou na musica que estava ouvindo. Foi até ao Bairro São Francisco. Deu sinal para o ônibus parar e saltou lá de dentro. Andou mais algumas quadras. Um casal de moradores de rua dormia abraçado envolto em cobertas de baixo de uma marquise. O cachorro deles levantou as orelhas, atento, quando ela passou, mas não latiu.
Parou em frente a uma porta retrátil de ferro pichada. Pegou o molho de chaves de dentro da mochila e abriu a porta. Entrou e trancou novamente a porta atrás de si. A luz do saguão acendeu sozinha, iluminando o estreito lance de escadas a sua frente. Subiu um andar, passou pelas portas de seus dois vizinhos de baixo. Um deles tinha um capacho e uma plaquinha de bem-vindo. O outro não tinha nada de convidativo. Ela subiu mais um andar. Chegou na porta de seu próprio apartamento. Pegou as chaves novamente e entrou. Era uma quitinete, pequena e mal decorada. Seu gato, Fritz Haber, a recebeu na porta, miando. Era um donskoy, ou seja, um gato pelado. Ele tinha a pele rosada e grandes olhos azuis. Ele se esfregou em suas pernas, carinhoso, ronronando.
Ela trancou a porta de casa e tirou a roupa. Ficou só de calcinha e pegou uma camiseta tamanho G que estava jogada no braço do sofá. A camiseta desbotada estava estampada com letras do alfabeto gótico escrito "too cool to be true". Seu cachorro, Vamderlei estava dormindo encolhido nas almofadas do sofá. Vamderlei era um enorme galgo espanhol castanho tigrado, com oito anos de idade, que foi usado para competir em corridas até não aguentar mais por estar velho. Ele estava na fila para ser sacrificado quando foi resgatado e rebatizado. Seu primeiro nome foi Jasse Owens, apologia ao velocista negro que venceu as olimpíadas de Berlin durante a Alemanha nazista. Por considerar que nome do cachorro remetia a seu passado obscuro de maus tratos além de ser um pouco racista, ela o rebatizou em homenagem a Vamderlei Cordeiro de Lima, o atleta brasileiro que, mesmo perdendo a liderança por ser interrompido por um fanático nacionalista terminou a maratona recebendo a medalha de bronze.
Ela ligou o celular no Bluetooth e conectou na caixa de som. Selecionou uma playlist de musica eletrônica estilo lounge. Ela foi até a cozinha onde encontrou pão quentinho em sua maquina de pão. Ela fritou um ovo e se serviu. A gema estava liquida. Ela separava pedaços do miolo do pão para embebedar na gema e comer. Depois de terminar o ovo e uma fatia de pão colocou o prato na pia, junto de mais louça suja.
Ela deu um longo bocejo, se espreguiçando e foi até seu quarto. Jogou-se na cama que estava bagunçada com uma coberta de lã, um travesseiro de espuma e o lençol de elástico soltando do colchão. Fritz Haber saltou junto dela, subindo e se acomodando em sua lombar. Ela decidiu dar o dia por encerrado. Era suficiente por hoje.
(Desenho que eu fiz da protagonista)

Um comentário:

  1. Interessantíssima a construção da descrição literária, de onde podemos extrair o âmago da personagem inominada, sua rotina e gostos, mas, sobretudo, a proximidade com Cadu, Vamderlei e Fritz. Aparentemente são seus pilares diante da trama principal, o opróbrio arquivamento do inquérito.
    A ênfase no conjunto de associações conotativas, inclusive, remete a Aluísio de Azevedo e Camilo Castelo Branco, expoentes desse tipo de escrita.
    O formato novelesco se mostrou apropriado para o romance, não surpreendendo caso os próximos capítulos terminem com grandes mistérios, desvendados apenas em outras edições, a fim de prender a atenção do leitor.
    A nós resta apenas expectar a publicação do jornal.

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