quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Cupuaçu me faz chorar

 Voltei ontem da minha terceira viagem para a Amazônia. Quem me conhece um pouco, ou quem lê meu blog, sabe que eu tenho um amor profundo por florestas. Árvores, pedras, fungos e animais tem a capacidade de gerar uma descarga enorme de endorfina no meu corpo. Água corrente então, me desperta um êxtase que beira o amor erótico (no sentido platônico da palavra).  Viajar para a Amazônia para mim é sempre uma experiência maravilhosa, que eu considero infinitamente superior a viajar para Disney ou para Paris.

A primeira vez que eu estive na Amazônia foi com minha melhor amiga, Eduarda. Ela não tem irmãos e, sabendo do meu amor por florestas, me convidou muito gentilmente para a festa de oitenta anos de sua vó, Dona Socorro, lá em Manaus. A família materna da Duda é de Cruzeiro do Sul, no interior do Acre. Não são indígenas mas são de uma realidade totalmente diferente da minha e foi um grande choque cultural conhecer e interagir com eles. Ainda sim, foi maravilhoso porque são pessoas muito calorosas e receptivas. O padrinho da Duda, apelidado carinhosamente de tio Jejé, me serviu uma infinidade de peixes, frutos e farinhas que eu nunca teria capacidade de memorizar em tão pouco tempo. Ele e o tio Junior nos levaram para conhecer parques, mercados, o rio Negro, algumas beiradas da floresta e inclusive uma aldeia de indígenas Tukano que recebe turistas. Foi a esposa do tio Junior, Adriana, que me deu cupuaçu para eu experimentar pela primeira vez em um delicioso mousse. Eu sou eternamente grata a todos eles e provavelmente eles nunca vão saber o quanto a receptividade deles foi importante para mim e como aquela experiência me marcou pelo resto da vida.

A segunda vez que eu fui a Amazônia foi a convite da Universidade  Católica de Rondônia. Mais especificamente um convite feito ao meu pai, para participar de um evento, feito pelo coordenador do curso de direito, Prof. Pedro Abib, e pelo seu pai Prof. Dr. Fabio Rychecki Hecktheuer, o reitor. Meu pai e o Prof. Dr. Carlos Frederico Mares de Souza Filho ambos professores da Pontifícia Universidade Católica do Paraná foram convidados pelo reitor para ministrar uma série de palestras.

(aqui acho necessário abrir um espaço para falar da honra que foi conviver por poucos dias com o Professor Carlos Marés. Poderia falar que ele foi  Secretário de Cultura do Município de Curitiba; Procurador Geral do Estado do Paraná, Presidente da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Procurador Geral do Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Presidente da Fundação Cultural de Curitiba, Presidente do Banco do Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE, Presidente do Instituto Socioambiental – ISA, Membro da Junta Directiva do Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos - ILSA, entre outros, que esses títulos todos iam soar muito interessantes. Sinceramente? Nada disso me importa. O que realmente me inspira nesse homem é que ele foi preso e torturado por militares durante a ditadura no Brasil, por defender os direitos humanos, entre eles o direito dos povos indígenas, foi mandado para o exilio, sobreviveu a tudo isso e voltou para contar a história).

Em Porto-Velho eu estava em casa, diferente do sentimento de estranheza que eu tive em Manaus. A cidade era quase toda habitada por sulistas que emigraram para o norte. A Universidade Católica e a casa do professor Pedro me eram muito familiares. A família do professor era de Caxias do Sul, gaúchos iguais ao meu pai, que é de Santa Rosa. Eram católicos fervorosos adeptos da teologia da libertação, sendo pessoas envolvidas com causas sociais e caridade, como eu fui educada a ser. Eles exerciam a docência e meus pais ambos são doutores e professores universitários. Ainda por cima a mãe do professor, Marcia Abib Hecktheuer, era de ascendência libanesa, como a minha mãe.

Eu esperava participar de um evento acadêmico como muitos outros que já havia participado, inclusive em outros países. Fui surpreendida por um evento multicultural que contou com a presença marcante de membros do povo Karitiana. O professor Pedro Habib convidou os indígenas, alguns deles alunos da universidade, para fazer uma apresentação a respeito dos saberes tradicionais que incluiu dança e canto.

O Professor Pedro quando soube que os Karitianas ficariam na casa de passagem indígena da cidade logo acionou seus contatos na igreja católica e arranjou um centro de retiro onde os convidados se sentiriam mais bem recebidos. Para quem não sabe as casas de passagem da FUNAI são lugares decadentes e a grande maioria esta fechada por ser absolutamente insalubre. Os Karitiana ficaram agradecidos e retribuíram a sensibilidade do professor com o presente mais precioso que eles poderiam ter concedido: Convidaram o professor Pedro para conhecer sua aldeia na floresta Amazônica rondoniense. E bom anfitrião que é, convidou seus colegas sulistas para desfrutar desse privilégio.

O professor Carlos Marés não quis nos acompanhar, ele já havia conhecido muitas aldeias. Sendo assim só restou eu de paranaense entre os gaúchos na aventura amazônica. Foram quase quatro horas de viagem. Uma hora e meia de rodovia pavimentada em meio a devastação do pasto do agronegócio até adentrarmos a reserva indígena Karitiana. O professor Pedro, meu pai, Marcia e eu enfrentamos duas horas em uma estrada de terra alagada dentro do território indígena, tomando chimarrão em meio aos buracos, trancos e barrancos.

Os  Karitiana são um povo especial, como todo povo originário. Foram quase extintos na década de 60 alvo da violência de pecuaristas e, sobretudo, de doenças trazidas pelos brancos. Eles foram afastados de seu território original, hoje ocupado por fazendas de gado e obrigados a adentrar o território do extinto povo Joari, pois este povo também falava a língua Arikém. Atualmente os Karitiana são o último povo no planeta que ainda sabe esse idioma. Como se não bastasse os Karitiana também foram alvo de biopirataria em 1987 e novamente em 1996 onde "cientistas" estadunidenses se passando por médicos roubaram material genético de toda aldeia alegando serem profissionais de saúde que trariam medicamentos para eles. Este material está estocado em laboratórios das universidades de Stanford e Yale nos Estados Unidos. Ocorre que para esses povos o sangue possui uma cosmologia própria, pois a alma está no sangue e deve ser sepultado quando fora do corpo. A existência desse sangue em prateleira de uma universidade é uma fonte de sofrimento psíquico e espiritual.

Além dessas mazelas os Karitiana sofreram com outro problema trazido pelo homem branco, no final da década de 70, auge da ditadura militar e genocídio indígena do último século, um casal de missionários neopentecostais estadunidenses adentrou a aldeia para estudar Arikém e posteriormente catequisar os indígenas. Coincidentemente alguns anos antes do roubo de material genético. O resultado dessa intervenção: a aldeia foi divida em dois. De um lado do rio estão os indígenas evangélicos, liderados pelo cacique que também é pastor. Do outro lado do rio, o povo que segue o pajé e os ritos tradicionais.

Depois de toda essa série de abusos, não é de se admirar que esse povo seja receoso quanto a entrada de brancos em seu território. Nós mesmos fomos surpreendido por invasores pescando dentro da área protegida da reserva no nosso caminho para a aldeia. Assim, fomos para lá sabendo da honra que é ser escolhido entre os brancos para conhecer esse território sagrado.

Chegando na aldeia eu me aproximei da Cristiane Karitiana, uma das filhas do cacique pastor. Ela falava um português muito tímido mas parecia animada em me mostrar a aldeia. Me mostrou seu macaco aranha de estimação, uma paca domesticada, araras, papagaios, gatos e cachorros. Conheci a varanda do seu irmão mais velho. A cunhada de Cristiane estava preparando almoço em uma panela de pressão. "O cheiro está bom, o que estão fazendo?" "Macaco" primeiro eu ri, depois percebi que estavam mesmo preparando macaco e meu riso se converteu para um sorriso de constrangimento. Naquele momento outras três adolescentes se aproximaram para falar com Cristiane. Falavam em Arikém e olhavam para mim. Eu consegui distinguir uma palavra em português no meio da conversa. "Apresentação". Nessa hora eu disse "Sim, eu assisti a apresentação". A Cristiane riu e me disse "elas estão dizendo que seus olhos na apresentação estavam assim" e fez um sinal com os dedos no rosto, indicando que meus olhos estavam arregalados na apresentação. Eu transpareci no meu rosto a surpresa e o fascínio de presenciar a cultura originaria em um auditório da universidade de direito.

Andamos pela aldeia, o professor Pedro tomou um banho de rio com as crianças Karitiana que me deixou morrendo de inveja. Eu não podia entrar no rio, iria direto da lá para o aeroporto.

Agora, por que cupuaçu me faz chorar?

Pois bem, eu já disse a você que eu experimentei cupuaçu pela primeira vez em Manaus. O ocorre que a primeira vez que eu vi a fruta e a árvore de cupuaçu foi dentro da aldeia Karitiana. Estava andando com meu pai, o cacique, o professor Pedro e Cristiane. Foi quando avistei a árvore repleta de frutos, muitos no chão e comentei com meu pai "pai, eu acho que é cupuaçu" e meu pai, que me ensinou o amor por colher o próprio alimento, se aproximou muito interessado para recolher algumas frutas do chão e examina-las mais de perto.

Nesse momento um senhorzinho se aproximou. Era um senhor na casa dos setenta ou oitenta anos, pequeno, com olhos cerrados e brilhantes. Veio andando com os braços para trás e olhando para meu pai com um sorriso falou algo em Arikém que nós não entendemos. A Cristiane traduziu para mim "Vocês gostam de cupuaçu? Podem levar, tem bastante".

Foi então que o cacique nos explicou que aquele senhorzinho era seu sogro e foi cacique antes dele. Levou algum tempo para eu entender que esse senhorzinho foi o cacique que viu seu povo ser morto e expulso do território. Por nós, sulistas. Não foram os portugueses, os espanhois ou até mesmo os estadunidenses que dizimaram o povo Karitiana. Fomos nós. Claro que eu, o Professor Pedro, meu pai ou a Marcia nunca mataríamos ninguém nem roubaríamos suas terras. Mas quem somos nós? Membros da universidade fundada para atender os filhos dos fazendeiros e dos moradores da cidade que vive das migalhas dos mesmos fazendeiros. Gente que derruba a floresta para comer carne de boi. A floresta onde os Karitianas vivem. E é claro que o velho cacique sabia disso. Não sabia que éramos da universidade, mas sabia que éramos sulistas. A cuia de chimarrão na nossa mão estava lá para comprovar de maneira inegável de que éramos sulistas.

Levaram meses para eu conseguir absorver essa experiência e esse momento único na minha vida. Ainda estou absorvendo, para ser sincera. Aquele senhorzinho é o único sobrevivente de um etnocídio que eu conheci na minha vida. Aquele senhor, pelos meus cálculos, viu o estilo de vida que foi ensinado a ele pelos seus pais e avós serem destruídos ao longo da sua vida. Foi expulso de sua terra natal onde aprendeu a nadar, a caçar e a cultivar a terra. Viu quase todo seu povo morrer. Teve seu sangue roubado, sua alma roubada. Viu seu povo ser dividido por uma religião de fora.  Por pessoas de pele branca, estatura alta, olhos claros que falam português e tomam chimarrão, assim como eu e meu pai.

 Eu olho torto para pessoas que estacionam o carro na restinga que fica na rua da minha casa da praia.

Não importa o quanto eu pense no assunto eu nunca vou entender de verdade aquele sorriso contido e aquelas palavras em Arikém "Vocês gostam de cupuaçu? Podem levar, tem bastante".

É por isso que hoje em dia cupuaçu me faz chorar.


Eu saboreando um sorvete de cupuaçu em Belém do Pará.