quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Babitonga

Os vidros da casa estavam todos embaçados. As paredes estavam suando, brilhando de umidade, era possível observar pequenas lagrimas escorrendo da alvenaria de tempos em tempos . Do lado de fora o céu cinza diminuía a luminosidade do dia e uma garoa incessante e silenciosa preenchia o ar e deixava todo e qualquer objeto exposto repleto de gotículas de água e irremediavelmente molhado.  Essa atmosfera era proporcionada pela floresta tropical fechada e pela maresia.
Já faz mais de uma década mas eu me lembro bem. Estávamos no inverno, junho ou julho. O litoral de Santa Catarina costuma ser um lugar quente, pelo menos para quem está acostumado ao frio serrano de Curitiba, mas nesse dia estava frio a ponto de eu vestir uma calça comprida e um moletom. Ainda sim estava de chinelo porque sempre me recusei a usar sapatos na praia. A família Duarte Silva estava toda reunida, depois de anos. Nós saímos em dois carros e fomos em direção a Marina do Pontal, na entrada da Baía da Babitonga.
Quando o Seu Orilton Duarte Silva percebeu que seu tumor tratava-se de um câncer agressivo e terminal pediu com a voz embargada para sua esposa, Dona Maria José Duarte Silva,  que seu corpo fosse cremado e as cinzas jogadas na Baía da Babitonga. Tenho certeza que ele imaginava algo bem diferente do que de fato ocorreu no dia de sua cerimônia de cinzas.
Naquele dia o tempo estava ruim e ventava muito. O mar estava batido, cheio de carneirinhos, não conseguiríamos fazer a cerimônia embarcados como queríamos. Assim, subimos em um trapiche em ruínas por uma escada de madeira apodrecida usada pelos pescadores que aproveitavam a estrutura cálida para pescar siris de tarrafa. A maré estava alta então para subir na escada era preciso entrar no mar com água nos joelhos.
A viúva, que tinha dificuldade de locomoção, decidiu observar a cerimônia da areia.
Minha mãe, a filha mais velha do falecido, trazia nas mãos uma caixa de madeira com puxador de ferro. Foi dali de dentro que ela tirou um saco plástico com as cinzas do meu vô aglutinadas como que em uma pedra. 
Já faziam dois anos que meu vô Orilton havia falecido mas sua segunda filha, Mirna, havia emigrado para a França no final da década de 90 e não havia conseguido voltar para o Brasil desde o falecimento até aquele momento. Por viver no hemisfério norte, só conseguiu tirar férias no verão de lá, ou seja, no inverno daqui.
As ondas batiam no trapiche, estourando com força, fazendo barulho e respingando água salgada e espuma.
"Alguém quer dizer algumas palavras?" Minha mãe perguntou, levantando a voz para competir com o barulho do vento e das ondas.
Após um minuto com os parentes se observando em silêncio o filho mais novo, meu tio Fernando, disse "Viestes do pó e ao pó voltarás".
Todos consentimos. Choramos muito nesses dois anos da data que ele havia falecido. E antes disso, nos seis meses que vimos o homem que meu vô era ser aos poucos consumido pela doença e transformado em uma figura quieta, parada, pálida e triste. Dessa forma, quando a família se reuniu naquele dia chuvoso e subimos naquele trapiche no meio do mar revolto, tudo estava molhado, menos os nossos olhos que já estavam secos de tanto chorar.
Minha mãe abriu o saco plástico, pegou um punhado de cinzas e jogou no mar. Depois dela meu tio Fernando que estava mais próximo jogou também. Minha tia Mirna também jogou as cinzas quase simultaneamente ao meu tio José Guilherme, o terceiro filho, que estava muito quieto.
Meu pai, que era mais próximo do sogro do que do próprio pai, também jogou um punhado de cinzas em silêncio.
Não consigo lembrar se minhas irmãs também pegaram as cinzas com as mãos para jogar no mar ou se tiveram receio e preferiram só observar. Mas eu lembro que quando eu fui jogar um punhado de cinzas o vento soprou na minha direção e uma onda estourou no meu pé, jogando as cinzas que eu havia atirado no ar na minha própria direção e cobrindo meu corpo, que já estava molhado pela água do mar e da chuva, de cinzas humanas. A umidade da minha pele, minha roupa e meu cabelo, reteve as cinzas como uma cola.
Fechei os olhos e a boca para que não entrasse pó de cinzas. Minha mão direita também estava coberta de cinzas então usei minha mão esquerda para limpar meu rosto.
Eu podia ver que meus parentes também estavam sofrendo para não serem atingidos pelas cinzas com o vento, mas não sei se mais alguém acabou inalando acidentalmente como aconteceu comigo.
Depois de jogarmos todas as cinzas no mar, descemos do trapiche limpamos o saco plástico e a a caixa de madeira na água salgada. Eu aproveitei para limpar minhas mãos e meu rosto. Jogamos o saco plástico no lixo e enterramos a caixa de madeira, que era biodegradável, na praia de frente da nossa casa.
Sempre que eu vejo o mar, em qualquer lugar do mundo que eu esteja, eu lembro do meu avô.



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